EU VIVI

Não, não é mentira nem invenção. São as lembranças do que eu vivi. Do que vi e ouvi naquela noite, naquela terrível noite de inverno no sul. Morava eu na chamada “Região da Campanha”, na Fronteira do Brasil com o Uruguai, onde o inverno é gelado e, durante esta estação, o vento Minuano uiva, entrando pelas frinchas das portas e janelas como um lamento mortuário ou sepulcral. Estava frio, muito frio.

Estava eu sentada no Galpão, perto “das casas”. Tinha feito um enorme fogo na velha lareira. Estava com medo, sim. Já era tarde. A luz elétrica ainda não havia chegado onde eu morava. Em pleno final do século XX, a luz elétrica no interiorzão ainda era luxo destinado a poucos. Sentei-me num banco tosco de madeira, peguei o mate, com a água aquecida na combona feita de lata de azeite e arame, e fui sorvendo o mate devagar e pensando: “Como eu envelheci!...” Resmunguei umas preces pro Negrinho do Pastoreio (fiz mais uma vez a promessa de dar-lhe treze velas, como eu sempre fazia e jamais cumpria). Estava com medo.Ventava muito e vinha tempestade e uma mulher sozinha no campo, mesmo velha (e talvez por isso!) sente medo. Lembrei-me do que aconteceu naquela noite.

Era também inverno e noite de tempestade. Eu enviuvara há pouco e tomava conta sozinha da fazenda, ou do que havia restado dela. Estava sentada no mesmo lugar, envolta pelas minhas lágrimas e pensamentos... Tomava meu mate, quieta, como menino que se “suja” e se esconde atrás da porta, com medo do relhaço. De repente, os cachorros latiram forte e me tiraram daquela quase-dormência da tristeza em que eu estava mergulhada, semelhante à sonolência “meio-dormindo, meio-desperto” em que ficam os velhos antes de “cair no sono.” Mas eu ainda era jovem. Levei um susto! O vento uivava com mais força e eu pensei: Será que o velho umbu vai inventar de cair? Credo!! E se viesse um raio?... E as “pragas” dos cachorros (que Deus os conserve comigo!) queriam por força entrar pra dentro do galpão. Mas lugar de cachorro é na rua, cuidando da casa, cuidando da propriedade, dando sinal pros “vivente”!

– Para-te quieto, cusco! – Falei o mais alto que pude. Mas os “danados” não queriam se aquietar! Olhei pro meu gato (parecia tão velho! Já nem caçava mais os ratos, pois quando eu via, andava tropeçando neles pelo galpão. Na casa eu “botava” ratoeira, mas no galpão, não; dava muito trabalho e eu não andava com disposição). Gato velho, barrigudo e preguiçoso, pensei. Afinal, o pobre tinha o direito de descansar. Fiz com que pulasse para cima da lareira, peguei o lampião de querosene e, com dificuldade, abri a porta do galpão e alumiei para ver o que acontecia.

No que eu abri o portão (tão ranzinguento como eu, porque rangia nos seus gonzos de ferro já carcomidos pelo tempo!) os cachorros entraram feito doidos.

–Ave!... – disse eu. Olhei pra fora, não vi viva alma. Fiquei com pena dos bichinhos... Eu sabia que eles tinham que ir para fora, mas estava tão frio... O gato me olhava, de cima da lareira, muito quieto. Afinal, se ele estava ali, porque os cuscos também não poderiam?... Botei o lampião pendurado no gancho da parede, que um dia tinha servido de apoio aos velhos arreios, às esporas, aos aperos enfim e à linda barbela de prata que era ainda a única coisa bonita que eu tinha, só que agora guardava dentro de casa, embaixo do travesseiro. Deixei a porta enorme do galpão meio aberta porque se algum estranho inventasse de chegar eu iria ouvir e, se não ouvisse, os cuscos iam ouvir e latir. Sentei de novo, peguei o mate, virei a erva e...acho que cochilei.

De repente, ouvi um barulho estranho e dei um pulo: entrava um homem! Socorro! E era um velho!

– Santa Maria! Quem és tu? – indaguei, tentando parecer muito forte.

– Licença, senhora. Entrei porque estava muito frio e eu molhado com essa chuvarada; vi luz e entrei. Me dá pousada, dona?

Ai meu Santo!! Era um homem alto, magro, de cabelos brancos, pele clara, vestido a gaúcho.

– Como apeou se os cachorros não latiram? Onde é que deixou o seu cavalo? De onde vem, seu... – e já estava com o revólver pronto na minha mão. O que estava pensando aquele velho filho da p...

Ele não me deixou terminar. Pegou o outro banco de madeira, feito de tronco de árvore e sentou, meio arredado do fogo. Me atalhou e disse:

– Calma, dona. Eu sou de paz!

O velho me olhou. Falou com calma.

– Se aproxime do fogo – disse eu. – Mas como veio: a pé?...

– Não. – respondeu o velho calmamente.

– Cadê o cavalo?

– Mas não pode ser uma égua? – e deu um risinho abafado e malicioso.

Botei a mão no revolver outra vez. Vi que o facão estava perto. Ia “botar” aquele velho metido a valentão pra fora do galpão a qualquer custo.

– Não se aporreie, menina. Eu nunca te fiz mal. Eu moro aqui.

– Como? – respondi. – O que é que disse?

– “Eu moro aqui”. Eu sou o seu avô.

– O quê? – o velho maldito tinha morrido há muito tempo! Eu nem tinha conhecido. Morreu antes de eu nascer, o desgraçado. Como é que estava ali?

– Eu vim te contar uma história. – disse o velho – e buscar uma coisa que me pertence.

Olhei: o rosto do velho estava diferente. Peguei o lampião e cheguei-o perto do rosto do velho.

– Santa mãe!... –

Rosto? Que rosto? Era uma massa informe, sanguinolenta, cinza e esbranquiçada com pequenas raias de um sangue escuro, coagulado. As mãos vinham em direção à cuia, eram dedos descarnados, com unhas longas. A roupa era em farrapos. Será que eu estava meio dormindo quando ele entrou e achei que era gente?? Como os cães continuavam a dormir? Antes que eu pensasse direito, aquelas coisas que tinham sido mãos avançavam para a cuia do mate. Olhei e vi uma coisa que tinha sido boca, acinzentada, com alguns dentes de raízes à mostra e com um dente de ouro reluzindo.

“Aquilo” não ia botar a boca na minha bomba de prata!

Eu sabia bem quem era aquele velho, se fosse mesmo meu avô. Tonta de medo me acomodei na cadeira. Peguei o Rosário dentro do bolso e apertei. Cheia de coragem (aparente) disse-lhe:

– Tu é que vais ouvir a minha história, velho desgraçado! Podes ter saído do Inferno, mas mais mal que causaste à minha mãe, tua filha, jamais poderás causar-me! Tu mataste a minha mãe!

O que seriam os olhos do velho pareciam faiscar! Ele estava furioso. Eu embrabeci. Dei um salto, fiquei de pé, e, com o dedo em riste disse-lhe:

– Velho maldito, eu sei o que fizeste à minha mãe! Por isso a vida dela foi um inferno!

– Eu sei, disse o velho. Mas ela ficou com uma coisa que era minha!

Parecia-me que o velho queria me enfrentar, mas “seria uma luta de foice”!! Ele não me conhecia! Eu custava a embrabecer, mas quando embrabecia, que saíssem da minha frente.

– Vais me matar?? Eu já “tou” morto. E “sempre” morei aqui. Só quero o que é meu pra ir embora.

– E vais mentir, como mentiste à minha mãe!

Lembrando a história que minha mãe contava, vieram-me lágrimas aos olhos. Mas eu não poderia mostrar fraqueza! Tudo veio à minha memória rapidamente...

Minha mãe, filha única de um grande fazendeiro, apaixonara-se pelo capataz da estância. O velho já havia acertado um casamento “do seu agrado”. Mas minha mãe relutava, arrumava desculpas, adiava. O velho desconfiou. Mandou vigiá-la. Mas antes mesmo de saber a resposta dos seus capangas, soube o que queria. Pela manhã, viu adentrar em seu escritório o capataz. Homem jovem, bonito, pele queimada pelo sol. Homem da sua confiança. Honesto. Trabalhador. Mas, não sei porquê o velho não o havia metido na vigilância de Ceci.

– Licença, Patrão...

– Licença concedida. O que tu queres?

– É que eu ouvi uma conversa no galpão que o Patrão mandou vigiar a menina Ceci.

– Mandei. Por quê? É minha filha. Tenho que cuidar da sua honra.

– Patrão, a menina Ceci é honrada! E se o senhor está desconfiado, é bom que saiba que o peão que gosta dela é um homem honesto e respeitador!

– Então tu sabes por quem ela está “enrabixada”, bugre!

– Sei, senhor. E ela não está “enrabixada”. Sua filha é honesta, meu senhor! – A esta altura da conversa, mais desconfiado ou quase tendo certeza, estava o velho – Quem vem lhe pedir a mão de menina em casamento, sou eu, senhor!

O velho saltou e deu um grito! Parecia uma onça! Parecia trinta anos mais novo e muito ágil. Pegando o rebenque de cabo de prata, virou o mesmo e deu com ele várias vezes no rosto do jovem capataz. João, este era seu nome, não disse coisa alguma. Não se mexeu do lugar. Não baixou os olhos. Enfrentou o velho, mãos para trás, agarradas às costas. Assim ficou.

– Patrão eu “lê” fiz uma pergunta! Vai ou não me dar resposta?

O velho, enfurecido, vendo a ousadia daquele que ele considerava um “pobre coitado” e que o enfrentava, orgulhoso, fronte erguida, mesmo tendo um revólver à cintura e uma adaga metida na cinta, pelas costas, como os peões usavam, não esboçava um só gesto de violência, puxou o revólver. Neste instante Ceci entra na sala:

– Papai! Papai! O que o senhor vai fazer com o João?? Eu gosto dele, Papai!

– Eu não criei uma filha pra se casar com peão! O que tu pensas da vida? Acostumada ao piano e aos salões, vais para trás de um fogão e te encher de filhos com esse pulha??

– Papai, nós nos amamos!...

Nem havia terminado sua fala, quando o velho gritou:

– Juvenal! – Juvenal era o seu capanga de confiança.

O maldito Juvenal apareceu como se já estivesse esperando.

– Pega esse moleque – disse ele – tira da minha frente e mata!

– Não, Papai! Eu me caso com quem tu quiseres! Mas não faz mal pro meu João!

O velho sentou. Suava. Suava de ódio, porque a mocinha havia entrado. Não poderia matar o maldito em sua frente! Após acalmar-se um pouco e vendo que João não expressara a menor resistência e já estava amarrado por Juvenal, o velho sentou-se à sua escrivaninha, como estava quando João chegou. Olhou João e pensou: ele é mais forte que o Juvenal, é bom no tiro e na faca. Não é que o mesmo é um homem de coragem?! Pena que é pobre, não tem berço, não tem “eira nem beira!”

– Juvenal! Pega este infeliz e solta-o bem longe daqui. E tu, “infeliz”, nunca mais ponhas os pés aqui, porque serás um homem morto! Tu, “dona” Ceci, vai com a tua mãe e tua babá direto pro teu quarto. Bela educação te deu a “senhora sua mãe”, que só presta pra chorar e não foi capaz nem de me dar um filho homem!... – “Se este infeliz tivesse berço... era o genro que eu queria,” pensou o velho, de si para si... mas foi uma “fraqueza” e logo mandou embora aqueles pensamentos. – Vou acertar logo o teu casamento com o filho do compadre e não tem mais “desculpas”!

Em vão minha mãe tentou se libertar dos braços da sua mãe e da ama, porque as garras de ferro do meu avô a levaram para o “quarto das moças” (era um quarto que, nas estâncias, ficava no centro da casa e era sem janelas que dessem para a rua, dificultando assim romance espúrio).

Ceci não viu mais João. O que lhe teria acontecido? A ama vinha trazer-lhe comida e preparar seu banho, mas minha mãe não comia e não falava. Definhava a olhos vistos. Um dia, a velha ama ficou com pena da mocinha.

– Sinhá, se eu te disser uma coisa, tu “come”?

O pensamento de minha avó estava muito longe. Nem respondeu.

– Sinhá, é do “seu” João!

Minha mãe saiu de sua auto-hipnose e perguntou:

– O quê??

– A menina não vai “fala” pra ninguém, vai??

– Ama, claro que não! Fala, por favor!

– Sinhazinha: quando o Juvenal tirou “seu” João da sala, por diante, eu vi que “boa coisa” não ia “sê”. Assim que a sinhá ficou trancada no quarto, eu fui atrás. Eles levaram seu João pro galpão e deram nele, mas deram tanto que deixaram o “seu” João quase morto. Aí, o Juvenal “botou” em cima de um cavalo e foi puxando e eu ouvi quando ele disse:

– Patrão, vou “largá” no Cerro Largo. Daí ele termina de “morrê” e o senhor não quebra a palavra que deu pra sua filha! O Arroio enche e se ele não morre de todo de fome, aí morre!

Seu pai mandou dar mais um pouco ainda nele: o coitado já nem se mexia mais. Aí seu avô disse:

– Vou “capar” o desgraçado!

Mas o Juvenal “tava” cansado de dar tanta bordoada e disse:

– Patrão, cm todo o respeito, vale a pena “capá” morto?

O velho deu uma risadinha e saiu com ar de satisfeito. De noite, eu peguei a égua mansa e fui até o Cerro Largo. Procurei “por tudo” o pobrezinho. Achei! Escondi “ele” na “tapera” e voltei. Peguei pano limpo, comida, água e “umas erva” e curei o “pobrezinho”, dia por dia... (sim, porque trinta dias é certo que já se havia passado!)

– Minha bendita e abençoada ama! Que Nossa Senhora te recompense! Como ele está? Como ele está? Fala, ama! Fala!

– Menina, já vai. Ele “tá” bem, ele “tá” bem! Ele até mandou um recado pra menina: mandou dizer que, quando “tiver” bem, vem “buscá” a menina pra “fugi”, mas não é “pra se amigá,” é “pra casá...”

Assim minha mãe passou aqueles dias, esperando, esperando. Até que um dia acordou de madrugada, com a ama a cochichar:

– Menina, acorda. Teu pai mandou um recado pro compadre dele e “qué casá” a menina neste fim de semana. Eu já avisei o “seu” João; ele “tá” aí em baixo, eu arrumei os cavalos e juntei umas “roupa.” Levanta, menina, sem barulho. “Tá” tudo pronto. Vou contigo até lá.

Minha mãe foi com a ama, no escuro. Ao ver João levou um susto: seu amado tinha a marca do relho de seu pai em pleno rosto, seu nariz tinha sido quebrado. Mas continuava lindo, o seu amor!

Após beijá-la, João lhe disse:

– Espera, minha querida, meu amor! Vou deixar uma “lembrança” pro seu pai!..

Não adiantaram os pedidos de minha mãe. Meu pai foi até o quarto de meu avô. Entrou e deixou um bilhete: Vou casar com sua filha. Ela não vai ser desonrada. E prendeu o bilhete com a sua própria faca, no criado-mudo, ao lado de meu avô. Viu na parede a barbela de freio de prata e pensou: “É coisa bonita demais para cavalo! Vou levar para Ceci!”

E, assim, fugiram. Meu pai e minha mãe galoparam toda a noite, sem parar. De manhãzinha, chegaram ao povoado vizinho; meu pai conhecia o vigário desde menino. Casaram. Meu pai queria voltar para “esfregar a certidão de casamento” na cara do meu avô. Minha mãe não deixou.

Tudo isto me veio ao pensamento. Rapidamente. E o velho estava ali, na minha frente. Dizendo que “queria uma coisa que era dele!”

– Visão do Inferno, o que queres? Tu sabes que, quando eu estava para nascer, meu pai foi chamar a parteira e o arroio estava cheio?

– Sei.

– E tu sabes que ela estava sofrendo tanto, que ele não teve medo da enchente, e, mesmo assim entrou a cavalo, enfrentou a força da água e acabou morrendo quando eu nasci? Minha mãe pariu sozinha, arriscando morrer, ela e eu!

– Eu sei. Eu tinha acertado que ele ia morrer no arroio. E morreu.

– Acertado com quem, velho do Inferno?

– Com “ele”... – e deu uma risadinha – e tu sabes que tua mãe teve que se humilhar e teve que voltar para me pedir comida, para ela e para ti! Que quando me disseram que ela estava em minha casa, eu mandei dizer que ela entrasse pela porta dos empregados? Que eu rasguei o pedaço de papel que ela dizia ser a certidão de casamento, sem nem ao menos o ler? Que mandei dizer para ela que se ela quisesse comesse a comida dos cachorros, e ela comeu para te amamentar? Mas também comeu só aquela vez. Mandei o Juvenal correr com ela e com a criança dali. Depois...não sei. Nunca me interessou. Fiquei mais rico; tua avó logo morreu de desgosto. – E deu uma risada terrível! – Fui para um cabaré depois do Velório e aproveitei. Depois me casei com a mulher do compadre, que mandei matar. Eles moravam aqui! Mataram o compadre bem aí, onde tu estás. Só que “ele” um dia quis buscar a minha alma; mas eu disse que dava o que “ele” quisesse em troca; mas “ele” foi mais esperto do que eu! Pediu a barbela de freio de prata! Logo aquela, que o teu pai me roubou!

– Roubou, não! Ele deu para minha mãe!

– Usa a palavra que quiseres, mocinha! Mas me roubou e eu vim buscar. Fiquei velho e morri; mas “negociei” com “ele”. “Ele” me disse que só me daria a paz se eu lhe desse a barbela. Mas que eu não podia roubar. Tinha que me ser dada!

– E te disse que minha mãe, mendiga e tuberculosa, mendigava pelas ruas? E te disse que minha mãe “me deu” para minha madrinha, e que ela me educou, que eu cresci e casei com um sobrinho dela? E que minha mãe morreu como indigente? Sim, porque minha madrinha queria cuidar dela, mas ela fugiu, foi embora por causa da “tísica”? Ela era tão boa que preferiu morrer a correr o risco de pegar nos outros sua doença?

– E esse sobrinho era muito mais velho do que tu! Comprou esta fazenda, onde tu cresceste, porque gostavas daqui e vocês vieram para cá. Quando eu morri, tu eras bem pequena. Eu sabia que a Ceci tinha uma filha. Fiquei te rondando. Mas tinha que esperar o momento certo para te falar. O teu marido tinha acordos com o “Outro”, rezava, “essa coisa toda”. Eu sempre fui ateu. E a barbela de prata tua mãe ia deixar contigo, eu tinha certeza disso.

Fez-se um longo silêncio. Eu tinha nojo e asco daquele velho maldito! Mau! Tinha vergonha de ser neta desse avô. E estava com medo, muito medo. Mas ele não me haveria de vencer...

– Sabes porque teu marido morreu rápido? Porque eu já estou cansado de correr por estes campos, andar sem repouso, sem dormir e sem comer. Sem prazer algum na morte. Mas não quero ir para o inferno!! – As últimas palavras foram um berro! Como uma onça! Levantou-se do banco: não tinha pés...

– E tu queres que eu te livre do inferno em que já estás?

– Quero! Só tu podes faze-lo! Ou será que és tão burra e teimosa como tua mãe?...

Aquele espectro veio em minha direção! “Meu marido amado, me ajuda!” pensei eu!

E o velho vinha... Senti nojo e medo. Uma garra fria tocou minha garganta. Sufoquei. Senti uma dor fina na garganta. O velho me soltou.

– Queres mais um “carinho”?

Repetiu-se a dor. Era demais!

– Velho, eu te dou. Vou já buscar!

Terminou o gás do lampião. Chovia e estava escuro.

– Eu vou contigo! Eu sei onde está!

Andei trôpega até a casa. A chuva estava fria. Eu sentia frio na alma.

Às apalpadelas cheguei até meu quarto. Levantei o travesseiro. Um relâmpago cortou o céu e eu vi a barbela. Era muita covardia libertar aquele velho!

Peguei a barbela com a mão esquerda, mas com a direita...

– Sai velho! Volta para o inferno! – E joguei nele todo o vidrinho de água benta que meu falecido marido sempre me dizia que eu conservasse embaixo do travesseiro. Agora eu sabia por quê.

O velho se contorceu e deu um berro! Parecia uma onça... E foi-se desvanecendo, sumindo..

Mas entendi quando gritou:

– Eu volto! Eu volto!...

– Que volta nada, velho amaldiçoado! – e recoloquei a barbela de prata no mesmo lugar, embaixo do travesseiro.

Quantos anos haviam se passado... Fiquei sempre viúva, não que me faltassem pretendentes, mas porque eu amava o meu marido. E tinha certeza de que um dia o encontraria, não sabia onde nem como... Mas os tempos mudaram. Fiquei pobre... mas nunca me faltou o pão. Envelheci... Nunca neguei comida a quem quer fosse. Os dias e noites passavam sem que eu sentisse. As lembranças do meu falecido marido estavam sempre comigo. Eu até queria morrer.

Assim eu divagava em meus pensamentos... Virei a erva do mate. Acho que cochilei... De repente, ouvi um barulho estranho e dei um pulo: entrava um homem! E era um velho...

– Licença, senhora. Entrei porque estava muito frio e eu molhado com essa chuvarada; vi luz e entrei. Me dá pousada, dona?...

Era um homem alto, magro, de cabelos brancos, pele clara, vestido a gaúcho...

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Nunca ninguém conseguiu saber que fim havia levado a velha viúva...

Quando, passados alguns anos, o governo mandou gente lá para verificar se o campo era produtivo, pois a casa virara tapera que diziam ser mal assombrada, viram tudo cheio de pó, mas tudo no lugar. Cama arrumada. Embaixo do travesseiro da velha cama de casal, acharam, enrolada num lenço, uma velha barbela de prata... E, sobre a mesinha de cabeceira encontraram três vidrinhos e um rosário... Dos três vidrinhos, dois estavam vazios... um continha água dentro. Seria água benta?...

ESPERANÇA
Enviado por ESPERANÇA em 31/01/2008
Reeditado em 21/09/2009
Código do texto: T840150
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