O HOMEM DOS SAPATOS TROCADOS

O HOMEM DOS SAPATOS TROCADOS

O dia amanheceu de sol. O céu estava limpo, a pronunciar um excelente dia para gozar os pequenos prazeres mundanos. Passear pelas ruas da cidade enquanto se comem castanhas assadas, ver montras, ver monumentos, tirar fotografias ou ainda sentir o cheiro e a tranquilidade dos jardins públicos. Não havia jogo de futebol para ver porque a equipa do coração jogava fora de portas. Este passeio apresentou-se como uma excelente alternativa para a tarde domingueira. Assim mesmo, ponderadas todas as vantagens de uma saída, lá abalou ele na companhia da sua melhor companhia, até à cidade interior, cidade essa além fronteiras, cidade que raras vezes era encarada como destino turístico de mera tarde domingueira. Lá chegados, tomaram-se as devidas cautelas no parqueamento do carro, cuidou-se de ver se o local não causaria problemas a terceiros e ao próprio. Trancaram-se as portas. Os sacos e bolsas foram prudentemente guardados na bagageira e sopesados todos os cuidados, lá abalaram à descoberta da cidade. Rua à direita, rua à esquerda, nariz empinado, ambos seguiram o que o instinto recomendava. Algumas fotografias para mais tarde recordar, foram batidas, as quais passaram por enquadramentos urbanísticos, jardins públicos ou alguns “apanhados”. Visitaram-se igrejas, explorou-se a zona histórica, apreciaram-se os comportamentos de vida social das gentes. De destacar que a cidade visitada tem vida social muito activa com predominância para as muitas crianças que na companhia dos pais davam colorido às artérias centrais da urbe. Esta observação permitiria perceber que a cidade não ignora os apelos à natalidade e que em boa verdade os pardalitos humanos são disso testemunho.

Na praça central, cujo nome ignoro e também não é importante, comboios assadores de castanhas estavam em franca actividade com filas de compradores aguardando a vez para adquirir as desejadas quanto bonitas castanhas, cujos olhos faziam crescer água na boca. Certo que nem tudo estava tão bem quanto os olhos viam por nem sempre os cuidados cívicos serem os mais recomendados. Falo das cascas das castanhas que se espalhavam pelo chão da praça pública e logo ali com receptores de lixo, mas enfim…

À parte isso, salvava-se o ambiente animado. O inusitado turista apreciava ao pormenor toda a ambiência que ali se vivia e disso tecia rasgados elogios. Gente feliz, deduzia ele. Também na fila das castanhas, o homem dos sapatos trocados ia aguentando todo o tempo para satisfazer um desejo generalizado da época outonal. Um cartucho de castanhas seria o suficiente para corresponder à tradição. Faltou apenas a tradicional água-pé tão característica deste período. Mas, “à falta de cão caça-se com gato” e em vez de água-pé, a cerveja fez a honra da companhia. Mistura explosiva a adivinhar consequências breves do foro fisiológico. Meia hora depois, o inevitável aconteceria e o turista lá teve de recorrer ao WC da cervejaria onde antes se havia instalado na esplanada a saborear as castanhas e cerveja.

Sentado para sanita, eis que repara nos pés e atónito vê que os sapatos são diferentes! Um misto de riso e vergonha trespassa-o. A sós, ainda riria de si mesmo e ainda lhe sobraria tempo para reflectir sobre se a boa disposição dos compradores de castanhas não estaria centrada nos seus pés. O caso não era para menos. Um sapato de pala e um de fivela!!! Um sapato preto e um cinzento!!! Bem, no circo é de esperar, mas em quem se pavoneava feito turista, de máquina fotográfica na mão e elegantemente vestido…essa não lembrava ao diabo. Agora, atravessar o espaço interior da cervejaria até à esplanada, é que vai ser, dizia para si. Que vergonha…mas, na casa de banho é que não poderia ficar. Como fazer, como disfarçar e esconder a vaidade acima dos pés, que estes punham a ridículo? Bom, vou ter de me mostrar seguro, confiante, para que as pessoas que estão sentadas nas mesas se repararem em mim o façam em direcção ao rosto, dizia para si. E se as coisas não acontecerem assim, acho que devo pensar noutro plano, para os mais atentos aos pés. Bom, para esses vou fazer de conta que nada sei, que está tudo bem e que se se rirem, não será de mim.

Depois de atravessar até à porta da rua todo o espaço interior da cervejaria e debaixo da maior discrição possível, faria o julgamento ao meu comportamento e ao das pessoas. Será que alguém reparou nos meus pés? Será que os meus pés nada lhes disseram porque também eles usavam sapatos trocados? Fiquei sem saber. O certo, é que nada me disse que tenham reparado nos pés, nem em mim. Fora da porta e à mesa da esplanada aguardava-me a boa companhia a quem revelei o segredo que me trazia constrangido desde há cinco minutos. Risada geral e sonora que despertou alguns olhares próximos, enquanto escondia os pés debaixo da mesa, em posição de pés cruzados. Assim, estaria até à hora da partida, a qual foi programada para a chegada do lusco-fusco como auto defesa para olhares que poderiam constranger e estragar o final de um domingo que se verificaria feliz. Doravante, dizia para si mesmo: antes de sair de casa faz o teste da sanita, não vá acontecer trocar os sapatos...