PROVAS DE AMOR

 

        

Senhor escritor.

 

 

“Um primo de minha mãe faleceu em Manaus.

Ao recebermos a notícia pelo rádio em São Paulo meu marido reagiu lívido, mas recuperando-se no segundo seguinte conseguiu parecer natural.

Silenciosa, estranhei.

Tratava-se de um primo de minha mãe a quem eu só havia visto uma vez e meu marido sequer conhecera.   

Ao longo dos próximos dias a vida voltou ao normal. Os negócios dele continuaram no mesmo ritmo, até um pouco melhores porque conseguimos vender uma casa posta à venda há dois meses. As atitudes dele eram as mesmas sem tirar nem por em suas virtudes e em seus defeitos.

Diante de todas as evidências de normalidade me tranqüilizei imaginando haver me enganado. Se eu tivesse o dom de ler pensamentos teria alguma pista sobre as transformações que se avizinhavam alterando completamente minha maneira de encarar o mundo. Alheia ao que estava por vir, mantive também o mesmo comportamento.

Eu nunca havia deixado passar uma única oportunidade de ser gentil e continuei sendo gentil. Nunca havia titubeado em sair com ele aos domingos e continuei saindo com ele aos domingos. Nunca reclamei por inutilmente esperar por ele na cama. Continuei não reclamando por ele quase amanhecer estudando na sala. Eu nunca havia me imaginado usando roupas sóbrias no dia-a-dia e continuei não usando roupas sóbrias. Era excitante perceber os olhares masculinos sobre mim. Nos dias quentes o uso de mini-saia e blusinha colada era parte de minha personalidade. Eu queria ser uma mulher erótica e me sentia erótica usando short curtinho.

Meu marido gostava de mim e de minha performance. Gostava a tal ponto que eu precisava filtrar seus incentivos para não me tornar indecente.

Meu marido nunca reclamou de minhas reclamações nem duvidou jamais de meu desejo de viver por todo o tempo sendo tão somente dele.

No dia em que assinamos os papeis para a transferência da casa ele propôs sairmos. Aplaudi fazendo charme.

Mentalmente me imaginei vestida como ele gostava de me exibir aos amigos. E eu me senti hiper-excitada. Um delicioso arrepio percorreu meu corpo quando, nua, vesti a tanga diminuta diante do espelho.

Eu estava me sentindo exuberante quando a noite chegou de lua cheia. Estava especialmente excitante em minha roupa provocante.

Fresquinha, perfumada, confiante em meu taco.

Foi uma noite lamentável.

Fomos a um bar onde ele era esperado por um homem esquisito. Não sei o que falaram, mas o homem me olhou várias vezes de alto a baixo. Depois de algum tempo o sujeito se propôs a sair. Em tom imperioso meu marido propôs alterarmos a ordem. Sairíamos primeiro. O mal encarado aguardaria pelo menos meia hora antes de mudar um passo.

Ao sairmos do tal bar meu marido dirigiu apressado, entrando por ruas pelas quais nunca passávamos normalmente. Era evidente que procurava despistar alguém que por ventura nos seguisse. Finalmente entramos em um estacionamento. O homem amedrontado que me acompanhava voltou a ser o meu marido. Voltou a ser a pessoa que eu imaginara conhecer.

Estávamos em um hotel.

Na suíte, depois de algum tempo em silêncio absoluto, ele propôs que nos separássemos.

Assim. De chofre! Eu ficaria sem seu nome!

Meu moral foi parar na sola do pé.

Eu chorei.

Eu queria morrer.

Eu tinha o direito de saber o que estava acontecendo. Merecia uma explicação.

Arrasado, meu marido me disse que com toda certeza aquele homem do bar estava implicado na morte do primo de minha mãe.

Quase gritei exigindo que não mudasse de assunto. Estávamos falando sobre nós. Não sobre o primo de minha mãe!

Meu marido gritou mais alto.

Disse que estava sendo ameaçado de morte. Se continuássemos casados...

Gelei.

Meu marido fez uma pausa. Escolheu as palavras. Finalmente disse que o melhor para mim seria a separação. Ele tomara a decisão. Era o fim!

O mundo desabou sobre mim.

Se algo mais aconteceu naquela noite eu não sei. O que eu sei é que permanecemos no hotel por alguns dias. E que passamos os próximos dias mudando de hotel. O clima que envolvia nosso relacionamento passou a ser sufocante.

Eu estava apavorada.

Assinei o pedido de separação sentindo ódio de meu marido.

A última coisa que eu disse a ele foi que por algum tempo havia pensado que me casara com um homem. E que ele me provara ser um lixo.

Passei a morar em outro bairro. As minhas contas eram pagas por um advogado japonês. Ele era metido a pai. Regulava meus passos, limitava meus espaços. Acompanhada pelo japonês metido a tutor compareci a duas audiências no Fórum.

Depois, no apartamento, assinei uma série de documentos adicionais. Odiei profundamente todos aqueles dias.

Mas tudo passa.

Para minha surpresa o tal nipônico apareceu trazendo novos documentos. Todos os bens de meu marido foram transferidos ao longo do tempo para inúmeras pessoas e diversas organizações. Até que finalmente estavam escriturados em meu nome. Meu marido não tinha mais nada. Nada do que tivéramos em comum. Nem um mísero centavo. E tudo fora feito por ordem expressa dele.

Eu não conseguia entender.

O japonês não tinha autorização para explicar.

Alguma coisa muito séria levara meu marido de minha vida.

Obviamente precisei de algum tempo para me recuperar de baque tão intenso.

Aos poucos a vida foi readquirindo colorido.

Aos poucos, de quando em quando em meus dias solitários, comecei a precisar de novo sublimar os meus desejos.

Em sociedade com uma professora aposentada abri uma loja. A loja oportunizou conhecimentos. Dos conhecimentos resultaram amizades.

Quem tem muitos amigos tem um leque de opções e pode escolher companhias e comportamentos.

Confesso que desde então experimento e proporciono prazeres.

Eu, de novo, quis e quero ser poderosa esteticamente. Desejável e ardente. Erótica e provocante. Hábil exibicionista.

Eu tinha dinheiro.

Tinha uma cabeça liberal.

Tinha as rédeas de minha vida.

Foi por ter todos esses tesouros que ensaie um sonoro não a um industrial riquíssimo.

Só ensaiei, porque, na hora de dizer um não esculachando, tive uma recaída e os meus adormecidos princípios dominaram minhas palavras e minhas ações.

Procurei convencê-lo de que poderíamos continuar como estávamos. Continuar agindo como estávamos agindo quando nos conhecemos numa bacanal. Eu não queria mais me prender a alguém em particular. Tanto eu quanto ele, tínhamos boa porção do mundo aos nossos pés. Podíamos ter praticamente a quem quiséssemos. Na cor que quiséssemos. No manequim que desejássemos.

Ele, entretanto, foi quem me convenceu a percorrermos juntos uma longa jornada entre outros pares. Tínhamos e continuaríamos tendo liberdade de ir e vir. Liberdade para nos darmos.

Liberdade de ter para onde voltar. E, principalmente, de ter para quem voltar.

            Nós nos casamos de papel passado.

Com direito a lua de mel na Europa e a oferta de um bacana de arromba entre amigos no retorno.

            Há cinco anos residimos em uma rica mansão em bairro nobre. Até hoje ele nunca viajou sem que eu tivesse na mansão os garanhões de minha própria escolha.

            Ainda hoje temos para quem voltar de nossas fugas tão freqüentes.

            Mas eu hoje sou outra em razão de um outro choque muito mais terrível do que aquele que abalou e fez desmoronar o meu primeiro casamento.

            Aconteceu quando me aproximei do leito em que minha mãe praticamente agonizava. Desenganada, ela voltara do hospital para casa, em Belém.  E estávamos a sós naquele instante.

            Minha mãe minguara. Seu corpo era um palito. Seu rosto era pele sobre os ossos. Seu odor era cadavérico.

 Frágil, ela pediu minha mão.

Disse com ternura. Filha, eu vou esperar por seu primeiro marido no céu. Ele salvou a minha vida. Eu tinha um primo. Morto em Manaus. Era envolvido com o tráfico de entorpecentes, de armas, de pessoas, Envolvido com falsificação de documentos. Milhões de crimes. Ele me envolveu em dívidas com traficantes sem que eu soubesse. Alguns meses antes dele ser assassinado alguns rapazes violentos apareceram aqui. Exigiam pagamento de dívidas que eu teria com o tráfico. Envolvi seu primeiro marido sem consciência do que estava fazendo. Sem contar que ele era meu genro. Apenas citando-o como advogado administrador de todos os meus bens. Então eles foram procurá-lo em São Paulo. Ele prontamente falou comigo por telefone. Procurou me tranqüilizar. No dia seguinte ao que nos falamos por telefone mataram meu primo em Manaus. A partir de então os cães caíram sobre seu primeiro marido. É por isso que eu não tenho nada. É por isso que ele ficou sem nada. E é por isso que tudo o que nós tínhamos, passou a pertencer a você. O que era meu e o que era dele é seu.

Por alguns segundos devo ter passado por vertigem. Mas me recuperei.

Perguntei se ela sabia onde ele poderia estar. Se ela sabia sobre qual seria a situação econômica atual de meu ex.

        Ela apertou minha mão. Disse num sorriso frágil. Espero por ele no céu.

       Um raio partiu meu coração.

      Meu primeiro marido foi sem dúvida um homem a quem confundi com o lixo ”.

 

 

Leitora: Costumo me perguntar até onde consigo relacionar-me comigo mesmo. Sem me aceitar como sou não posso aceitar os outros como eles são. E não serei jamais aceito.

 

           

 

 

Lucas Menck
Enviado por Lucas Menck em 24/10/2008
Reeditado em 02/11/2009
Código do texto: T1246680