CEMITÉRIO COR DE ROSA (de 06 a 13/08/2007)

“(...) temos a pretensão de ser quase ficção / e somos apenas cientes da expressão, (...)” - Ozimar Alves Cunha, poema Fruto do espírito -

LÁPIDE 1

“A obra de arte não deve pregar, exortar, apelar para o sentimento, apontar metas ideais: ela tem seu objetivo em si mesma, e não além de si; é útil na medida em que é arte, visto que a arte é uma função da sociedade; mas é arte enquanto cumpre essa função.” - Giulio Carlo Argan, Walter Gropius e a Bauhaus -

Nasci com 3 quilos e algumas gramas e minha mãe me colocou numa lata de lixo de uma praça próximo ao palácio do governo, local luxuoso e com requintes medievais e europeus, disso não posso reclamar, minha mãe tinha muito bom gosto - motivo talvez que motivou ela a fazer aquilo. Num evento de sorte e devido ainda não existir a reciclagem orgânica fui levado a um orfanato e lá me deram o nome de Urys e com o estigma deste nome de lá segui empacotado como mortadela de terceira classe rumo a uma família que me adotou. Na verdade eles fizeram uma grande caridade, é muito provável que na tentativa desesperada de pagarem um pouco de seus pecados. Sei que aos doze anos fugi da casa daqueles que se salvaram com minha adoção e me embreei no vácuo do mundo a procura de uma mãe que nunca existiu e que nunca viria a existir para mim. Na verdade sentia e ainda sinto muita inveja daqueles que possuíam uma mãe e olhe que não são poucos os infelizes que eu tenho que odiar. Sei que o meu histórico homeopático me levou ao que sou hoje. Não pensem que irei entregar tudo que sei. Não. Mesmo porque sei muito pouco e o que sei foi roubado. Desta forma, não lhes interessam. Ora! Qual a maneira mais justa de compartilhar o saber num mundo capitalista se não o furto do saber, além de tudo é um ato de justeza. É um socialismo primitivo praticado inclusive pela natureza e por Deus com o seu povo ou mesmo pelos gregos que roubaram o fogo de seus deuses - que deuses mais desleixados.

Criar qualquer texto, em qualquer gênero requer um mínimo de lógica, nem que seja a lógica da não existência desta. Não costumo criar contos usando roteiros. Este conto é fruto de uma experimentação minha. Creio que ele deva funcionar, não somente como um desafio ao seu autor, mas também como um jogo para quem chegar a lê-lo. Não existe nada aqui de extraordinário. Este conto possui personagens curiosos que em minha opinião devem ser analisados com cuidado. A forma de discussão feita em cada bloco é uma maneira descontraída do autor para com os leitores. Isso eu creio que irá forçar o leitor a uma atitude mais posicional no contexto do conto. Existe uma experiência, que por sua vez irá cometer os seus excessos, mas também é possível existirem avanços no campo narrativo. Diversos autores fizeram tentativas de fraturar a maneira tradicional de narrar, e destas experiências surgiram diversos modos de narrar. Por sua vez estas experiências possibilitaram novas tentativas como é o objetivo deste conto. As novas tecnologias irão ebulir o advento duma nova literatura. Literatura fruto de uma fusão de arte, tecnologia e literatura comum. E estas possibilidades se multiplicarão consideravelmente se atentarmos para o fato das possibilidades de junções como: teatro, cinema, ciência e etc. Pergunto-me quantas pessoas crêem nesta nova literatura e me conformo ao saber que muitas já creram. Para terminar peço que me perdoem os excessos, mas infelizmente esta é a forma que senti de manifestar esta literatura que percebo latente atualmente.

LÁPIDE 2

“As coisas estão longe de ser todas tão tangíveis e dizíveis quanto se nos pretenderia fazer crer; a maior parte dos acontecimentos é inexplicável e ocorre num espaço em que nenhuma palavra nunca pisou.” - Rainer Maria Rilke, Cartas a um jovem poeta -

Tudo aconteceu de repente. Ele me viu do outro lado da danceteria e apenas me puxou para pista de dança e depois de alguns conhaques terminamos no seu apartamento. Confesso que aquela noite não foi fantástica, mas senti com ele algo que não havia sentido com ninguém. Ele soube de certa forma alcançar meu âmago da maneira que nenhum homem havia tocado. O seu preparo para o coito, seus gestos cheios de propósito, seu olhar entrecortado a lancinar o meu corpo despido me fazia de certa forma temê-lo e desejá-lo. No momento em que nos amávamos, senti que ele seria o homem ideal pra afagar toda a dor diluída que existia em meu peito. Pode parecer chocante, mas depois daquele encontro nunca mais viemos a nos encontrar. Fomos um para o outro apenas fluídos temporais e nada mais. Ainda hoje sonho com aquele encontro insólito que veio a fraturar a minha vida e que mudou pra sempre minha maneira de vê as pessoas ao meu redor. Meus sonhos de hoje são povoados por elementos remanescentes daquela noite estranha, mas que é tão real para mim que chego a pensar às vezes que estou a cada nova noite revivendo aquela noite. Tudo parece um jogo de espelhos que termina em meus sonhos catárticos que finalmente me leva a novos dias com novas noite e sonhos que constroem o meu hoje.

Vejam senhores, eu como homem respeitado - ao menos foi o que ele grafou naquela blasfêmia que ele diz ser um romance ensaístico -, venho através deste manifestar o meu repúdio completo às palavras deselegantes que o autor deste conto, ou seja lá o que for, expressara sobre mim no que ele estilisticamente nomeou de Lápide 1. Pergunto a vós, como alguém em sã consciência tem uma ideia miraculosa de tentar criar uma coisa desta forma. Não faz sentido. Sei que como um personagem de ficção e como criação de um escritor medíocre que o meu raciocínio não deve ser dos melhores, mas todos os tipos de injúrias este pseudoescritor desferiu contra mim. É de todo vergonhoso ser retratado desta forma injuriosa. Vai que num golpe de sorte este lunático que se diz escritor faça sucesso, como irá ficar a minha reputação já tão abalada com a loucura deste rapaz ocioso. Há ainda um agravante nas palavras tortuosas deste rapaz, ele pôs em minha boca todas as mentiras proferidas por ele, ele fez maquinalmente para que não houvesse chances de defesa para a minha pessoa, mas eu garanto serem falsas todas as afirmações por ele colocadas em minha boca.

LÁPIDE 3

“É que estou percebendo uma realidade enviesada. Vista por um corte oblíquo. Só agora pressenti o oblíquo da vida. Antes só via através de corte retos e paralelos. Não percebia o sonso traço enviesado.” - Clarice Lispector, Água viva -

Comprei Pigmeu ainda filhote numa loja de animais. Ele me custou alguns tostões que eu havia reservado pra este efeito. Depois que minha irmã Matilde havia falecido eu vivia muito só e resolvi adquirir um animal de estimação. Depois de muito pensar resolvi comprar o meu adorado Pigmeu. Sei que a chegada dele dissipou a minha tristeza obesa. Criei-lhe com todos os mimos que ele merecia e o ensinei diversos truques. É até feio de minha parte dizer que Pigmeu me faz muito mais companhia do que propriamente a minha irmã, pois esta era irritadiça e medonha. Sempre me senti muito só. As pessoas que me rodeavam não representavam para mim verdadeiras companhias. Eram na verdade meros acessórios. Minha irmã se enquadrava no grupo destes acessórios rutilante. Agora com o meu Pigmeu a coisa é bastante diferente. Ele é mais do que uma companhia, ele me completa na vida e creio que minha existência hoje sem ele não faria nenhum sentido.

Estou às vezes numa bodega imunda e me vem a ideia de um personagem e de certa forma não tenho domínio sobre aquela imagem que se impõe a mim na história. Futuramente irei costurar no retalho de minhas narrativas e este personagem se colocará como verdadeiro dono de si na história. Mas aí você pode me inquirir: e a soberania do escritor? Claro que o escritor possui uma autonomia. Ele é uma espécie de deus de suas histórias, mas como deus, ele dá livre arbítrio as suas criaturas para que elas possam não ser somente seres anômalos, mas seres dentro de uma realidade. Cada escritor cria o seu ritual para este ato criativo que é altamente fatigante. Da minha parte adoro imaginar personagens das formas mais insólitas possíveis, apesar de que a maioria deles finde no esquecimento. Ainda bem que assim como as células tronco guardadas para possíveis estudos, meus personagem não dependem da autorização de terceiros para serem sem o menor temor ético descartados.

LÁPIDE 4

“A arte é um espelho que ‘adianta’ como um relógio. Ás vezes.” - Franz Kafka -

Naquela noite Francisco foi dormir com a barriga cheia. Sua mãe havia preparado uma sopa deliciosa e Francisco havia adormecido enquanto a fogueira crepitava no terreiro na tentativa dupla de espantar tanto os mosquitos quando o frio. Francisco nunca havia conhecido o sabor de estudar. Sertanejo matuto e analfabeto. Seus vinte e nove anos de luta contra a seca lhe havia ensinado que estudo era coisa inútil. O que valia mesmo era a capacidade de pegar bois na mata, de ordenhar as vacas, de cultivar os cereais e de passar a noite na mata à espera do momento exato de balear o Caititu. Naquela noite Francisco sonhou com o Capitão Birobidjan e com uma história esquisita que ele fora incapaz de reproduzir para os seus comparsas. De início ele achou que estava sofrendo de alguma possessão demoníaca, mas ao acordar de verdade percebeu que realmente estava em sã consciência, apenas tinha sonhado sobre uma terra muito verde e cheia de animais e bastante calma e que era controlado pelo Capitão Birobidjan. Pela tarde Francisco se assustou ainda mais ao analisar as letras do pacote de seu fumo e constatar que agora entendia o que estava escrito ali. Francisco começou a remoer sua vida e a constatar que a leitura havia feito bastante falta em sua vida. Na hora do almoço ele comeu pouco e sua mãe achou bastante estranha sua atitude, pois ele era um dos que mais comia em sua casa. Pela tardinha Francisco pôs a sela em sua mula e seguiu rumo à cidade. Aquela cidade era uma outra cidade. Parecia que ele via sua cidade natal pela primeira vez. Havia caído as escamas de seus olhos e agora ele era um novo homem. Um homem sob o signo de Birobidjan, mesmo sem saber o que isso poderia significar. Sua vida futura iria lhe deixar estarrecido ao descobrir quem seria o prodigioso Capitão Birobidjan. Nunca mais Francisco sonhou. Daquele dia em diante trocou seus sonhos pela realidade.

Nasci na mente dele enquanto o mesmo comprova salame fresco e uma garrafa de vinho barato numa espelunca de terceira. A mulher que sou não posso dizer a vocês com precisão, já que o escritor que me criou não é a minha leitura favorita, portanto desconheço a mim mesma. Sei que sou fruto da imaginação alcoólatra de um certo senhor que por escrever crônicas dominicais num jornal sensacionalista e por ter cem gramas de diplomas universitários se acha no direito divinal de arrancar seres das trevas da não existência. Afinal o que sou eu mesmo? Gostaria de poder perguntar a quem me criou, mas neste momento eu estou ocupada pensando isso e o meu criador está escrevendo o que estou pensando e se nós dois estamos ocupados e se ainda eu só existo quando ele trabalha este é um claro sinal de que esse problema é claramente insolúvel. No final tudo não passa de uma reconstrução do cosmo. A realidade cria a ficção que por sua vez influencia a realidade que por sua vez recomeça o ciclo que findará não sei aonde. Viu... Agora mesmo acabei de falar filosofismo que na verdade é fruto da mente cambaleante do meu criador. Finalmente é bom ser construída artificialmente por alguém muito culto, pois ele nos dá suas qualidades e também suas podridões e acabamos nos tornando uma colcha de retalho composta dele e de seus conhecidos. Realmente a única solução é puxar novamente o cordão do novelo mágico e esperar que tudo o mais saia como a ficção queira.

LÁPIDE 5

“A bolsa de valores intelectuais é emotiva e calculista, como todas as bolsas” - Carlos Drummond de Andrade, Apontamentos literários -

Estou há anos escrevendo um poema épico em homenagem ao nazismo. Muitos podem achar que estou ficando louco, mas aposto que nenhum de vocês fizeram um estudo apurado sobre o que realmente representou para a humanidade as ideias nazistas. Estou sentido dificuldades de encontrar um idioma no qual eu possa compor este poema. Acho que vou fazer uma salada mista de todos que tenho conhecimento. Espero que seja uma obra bem recebida pela literatura, apesar de ser consciente das dificuldades que enfrentarei com as alas retrógradas da sociedade e que julgará meu poema pelo seu conteúdo, o que realmente não é eixo da obra. Há duas décadas atrás escrevi um poema em inglês sobre a bravura de Napoleão e não sei por que fui ignorado pela crítica. Alguns poucos que se atreveram a resenhar algo sobre o poema fizeram questão de enfatizar problemas estéticos que eu no momento não estava com paciência de trabalhar e que no fundo empobreceu um pouco aquele poema, mas nada que justificasse o meu total isolamento. Pretendo ligeiramente publicar o meu poema épico escrito neste novo idioma superior, será um marco e desta vez pretendo fazer de tudo pra ser reconhecido.

Saí do trabalho tranquilamente naquela sexta-feira. Imaginava que teria um final de semana tranquilo. Ao chegar a meu apartamento, fiz um bagulho para janta e depois abri o meu computador portátil e passei a ler os meus e-mails. Verifiquei que havia recebido um projeto de conto de um colega meu escritor. Curiosamente o conto era intitulado de Cemitério cor de rosa. Estranhei bastante aquele título, pois jamais havia visto aquela expressão, porém prossegui na tentativa de ler aquele aglomerado de fragmentos de pequenas histórias que não possuíam relação entre si e que não possuíam nexo aparente. Percebi que cada vez mais eu me distanciava de meu velho amigo que agora praticava uma literatura à Borges, como ele mesmo gostava de insinuar. Sei que li várias vezes aquele conto e procurei diversos roteiros de leitura e finalmente resolvi escrever um artigo, que no domingo enviei para o meu amigo, retratando toda a problemática que havia encontrado em “compreender” aquela sua maneira de expressar a realidade - se é que isso possuía algum sentido em sua literatura. Ainda no domingo recebi um e-mail de resposta onde meu amigo relacionava um grupo de escritores segundo o qual havia sido influenciado e na qual a sua literatura conseguia uma expressão maior. Ele me falou também de como sonhava construir uma forma diversa de narração. Fiquei meu bêbado com o e-mail que ele me enviara e somente consegui dormir naquela noite depois de sorver diversos copos de uísque. Dias depois soube pelos jornais da aterradora notícia da publicação de seu conto e da chuva de resenhas impugnando a intenção do meu colega. Pelo que me lembro fiquei num dilema cruel: apoiar meu amigo e por consequência ser taxado de desmiolado ou rachar logo com ele - coisa que na prática já havia sido feito - e me declarar um avesso aquele tipo de literatura praticada por visionários. Resolvi ficar encima do muro e me apoiar no que de concreto já existia.

LÁPIDE 6

“O que explica o sucesso de muitas obras é a relação ali encontrada entre a mediocridade das ideias do autor e a mediocridade das ideias do público.” - Chamfort, Máximas e pensamentos -

Sempre fui apaixonado pela antropologia. Ainda novo conclui o doutorado nesta disciplina defendendo minha tese na Sorbonne. Eu versava neste texto - que brevemente será transformado em livro -, sobre a influencia da antropologia na literatura pós anos 60. São diversos os autores, não somente europeus - mas também americanos -, que se apropriaram do ser humano e do que lhe é específico, para construírem a sua literatura. Não que os escritores anteriores a esta geração não o praticassem, mas é que estes escritores ultrapassaram a barreira da literatura e chegaram quase a escrever romances que poderiam facilmente ser catalogados como teses antropológicas. Posso citar como exemplo maior desta tendência o escritor eslavo Boris Ergovisg que chegou a introduzir teorias específicas da antropologia social em seus romances. O escritor argentino Rui Fernandes viajou para a África no intuito de compor um romance antropológico sobre as sociedades que viviam no sul deste continente. O brasileiro Armando Noronha vendeu tudo que possuía na tentativa de organizar um livro escrito por transeuntes que faziam contribuições num enorme rascunho coletivo. Eu mesmo já cheguei a experimentar compor este tipo de literatura quando mais jovem, só que não fui bem sucedido.

O Século XX está cheio de escritores que desafiaram a norma canônica de fazer literatura. Proust trouxe o fluxo de consciência à tona. Joyce remodelou a forma narrativa do romance. Osman Lins a revelia de Joyce colocou a própria estrutura do romance como alvo de sua reforma. Oscar Wilde desafiou a sociedade conservadora de Londres. José Saramago demonstrou que a língua portuguesa, apesar de agonizante, ainda não morreu. Clarice Lispector demonstrou que existe muito mais do que Machado de Assis na literatura brasileira. Gabriel Garcías Márquez dera o sopro mágico na literatura de barro latino-americana. Samuel Rawet colocou o conto num novo patamar. Dostoievski anunciou a depressão que se anunciava no novo século. Graciliano Ramos lavrou a certidão de óbito dos adjetivos. Franz Kafka predissera então o absurdo do mundo com o absurdo. Borges e Cortázar iluminaram as trevas dos mitos universais da América Latina argentina.

Ozimar Júnior
Enviado por Ozimar Júnior em 07/03/2009
Reeditado em 07/03/2009
Código do texto: T1473812
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.