Diálogo sobre um episódio

Você era miudinha, cabelinhos cortados em chanel, os olhos castanhos lindos, vibrantes, acesos. Tinha um jeitinho esperto, já dotada de uma inteligência sutil e contagiante, muito curiosa, atenta aos pormenores que lhe chegavam às mãos. Nada passaria em branco se no seu espírito pairasse alguma dúvida sobre o assunto que porventura dispusesse a questionar.

Me lembro com muito gosto de um episódio saboroso quando estávamos no cantinho do sossego. Resolvi, sem mais nem menos, obter uma gaiola, dessas que as pessoas aprisionam passarinhos.

Não sei se você guarda na lembrança o quão esfuziante de contentamento ficou, com a idéia de um pássaro somente seu. Tenho ainda hoje nitidamente o fato registrado na memória. Aliás, diga-se de passagem, toda vez que vejo a gaiola, mantida bem conservada na varanda como se fosse uma obra prima assinada por um artista de nomeada, me faz recordar a sua fisionomia de espanto e interrogação, quando surpreendentemente falei a você que o espaço interno dela era muito restrito para abrigar todos os passarinhos da terra.

Imediatamente você replicou a minha argumentação dizendo que bastava apenas um pássaro na gaiola, pois não era o seu desejo e nem havia necessidade de juntar a passarada inteira do mundo naquele pequeno ambiente. "Só um ou talvez dois passarinhos seria o suficiente pra mim", você disse.

Eu trepliquei falando a você que, se todos os passarinhos não coubessem na gaiolinha, seria injusto oferecer a um - ou dois que fosse - o privilégio de usufruir aquele ninho aconchegante e acolhedor que o protegeria das terríveis ameaças da vida à solta; então - continuei - neste caso seria mais sensato deixar a porta sempre aberta, pois assim qualquer passarinho poderia escolher livremente entre os galhos do relento e o confortável abrigo da habitação fechada, não é mesmo?.

Você pensou pensou no meu palavrório, e voltou com a seguinte indagação: "Tá bom pai, então me explica qual o motivo de ter comprado essa gaiola se você não vai arrumar nenhum passarinho pra mim?"

Eu não soube explicar a você filha, e ainda me pego perguntando se havia algum sentido plausível no meu impulso. Ahh, devia ter certamente.

E assim ficou. Como nenhum passarinho apareceu para reivindicar a propriedade, a gaiola permanece aberta esperando.

Na ocasião, tratei de fixar um espantalho como guardião em cima da porta escancarada.

Você era uma picurruchinha, há de lembra.

"Me lembro muito bem disso pai. Ainda bem que até hoje não apareceu nenhum passarinho a fim se trancar na gaiola!"

Você acaba de revelar o sentido minha filha.

Wagner de Oliveira
Enviado por Wagner de Oliveira em 20/03/2012
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