DO OUTRO LADO

- É a sua vez Fernando, acorda!

- Deixe-o, não vê que ele está ébrio o bastante para delirar?

- Fernando...

- Esqueçam-me, não sou como vocês! Não me importo com a vida, nem com que ela reserva pra mim.

Queres uma história, dar-lhes-ei uma! Eu poderia contá-la como vós, mas para quê? Fora escárnio, pura perdição... Pois bem. Lembro-me nitidamente dessas nuvens, do passado desbotado de minha existência e do sombrio instante em que fizera o pacto. Era quase noite de extrema escuridão. A lua rugia e o vermelho gritante escorria entre os dedos. Pronto! Às gargalhadas, repercutia o famoso fragmento do poetinha: “Que seja eterno enquanto dure!”. Pois o tempo é precioso e o primeiro de nós que vir a faltar voltará para contar como é o outro lado. Era menino e meu amor por Laura era verdadeiro. Portanto, quase não pude superar. Sinto a falta dela.

- Mas Fernando, a Laura morreu há tempos num acidente de carro e você ainda...

- Silêncio! Como entender a loucura de Hamlet, diante desta bagunça. É necessária uma caverna e noites de vigília para assimilar tamanha contemplação. Não quero ser interrompido novamente. Continuemos. Contudo, Laura dominava meus pensamentos. Era uma jovem de beleza invejável, cheia de encantos. Nada se pudera igualar a tal perfeição! Dessa vez, não havia a menor dúvida de que não estivera enxergando direito. Os meus lábios selaram os dela num intenso e prolongado afeto. Pudera nesse instante tomá-la em meus braços e percorrer cada curva do seu corpo. Rasguei-lhe as vestes, uma a uma. A palidez tomou conta da sua face. O gozo fora fervoroso, o calor dos nossos corpos, a febre dos meus lábios. A convulsão do amor. Ah! Que delírio! Não fora um desmaio apenas, mas sim a própria morte. Então, adormeci nesses braços. Custou-me muito acordar, porém, nesse momento não mais a senti. Tentei várias vezes adormecer no sono da saciedade, mas "Never More”. Acreditem amigos! Não duvidem de minha sanidade, nem tenham compaixão. Não é isso que espero.

- Vamos Fernando, continue. És um homem sensato, porém, ébrio.

- Covardes! Não compreendem a maldição do amor! Trata-se de uma infâmia, um crime.

- Chega de discussão! Não dê a mínima para eles, continue.

- Como já disse, percorri dias alucinados por esta visão e quando meu coração havia desistido a vi, frente a frente, como se estivesse dentro de mim. Pude notar que em seus olhos tinham muito a dizer. Demonstravam uma profunda tristeza, não como antes “olhos de ressaca, oblíquos e dissimulados” – maldita Capitu! - Esses olhos revelavam o encoberto, o implícito, a verdade! Pobre menina, que através desses olhos – os mesmos que me fascinavam, via agora a amargura da vida. De repente, daqueles olhos pequenos caíram lágrimas. Primeiro rolaram sobre a face, depois pingaram no abismo no qual se encontrava. Meus lábios selaram-se fazendo um silêncio absoluto. Ao erguer a cabeça com os olhos vermelhos, enxugando o pranto, nos olhamos. Entretanto, esse simples gesto me produziu um resultado inesperado: Olhei de relance, fechando os olhos em seguida. Nem eu mesmo pudera dizer por qual motivo agira assim – devia ser pelo esplendor da luz que refletia - Abri os olhos lentamente, e ainda permanecia lá, estática. Meu coração pulsava com voracidade e meus olhos quase não conseguiam distinguir tal visão. Ainda assim meu coração bradava - era um retrato vivo de minha amada - Algo de fato não estava claro, mas pouco me importava. A lua se tornava cada vez mais intensa. Mal pude conter-me. Chorei. Melhor dizendo, choramos. De repente, ouvi uma voz abafada que dizia:

- Fernando, o tempo não pára!

E o espelho caiu de minhas mãos. Quando dei por mim só havia cacos. Uma vida inteira de cacos! – fora um sonho ou alucinação? - Não! Não podia ser. Pisquei várias vezes e diante dos meus olhos, amigos, vi o caos e, entre eles, uma lágrima. Uma única lágrima. Uma única lágrima de sangue.

Clara dos Anjos
Enviado por Clara dos Anjos em 24/02/2007
Código do texto: T392086
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