O CHORO DA D20.
Por Carlos Sena


 
Rafael era Engenheiro Civil. Prestava serviços na qualidade de consultor em importante empresa pública no Distrito Federal. Seu contrato já estava sendo renovado pela segunda vez, como prova do reconhecimento e dedicação ao trabalho que lhe era confiado. Dentre outras coisas ele prestava assessoria a projetos técnicos em diversas Regionais afiliadas espalhadas pelos estados brasileiros. Casado com uma médica, bem de vida, residia no lago norte numa casa confortável – dessas que a gente costuma chamar de mansão. Mas Rafael era tão simples que poucos poderiam imaginar que desfrutava de posições privilegiadas socialmente. No seu ambiente de trabalho quando não estava viajando desenvolvia suas atividades sem maiores estresses. Relacionava-se bem com todos, especialmente com os colegas do setor pessoal da Instituição em que era consultor. Muitas vezes seus colegas consultores até o criticavam por ele não se juntar mais frequentemente ao “corpo” dos engenheiros.
Certo dia, pela manhã, ele chegou ao setor pessoal e falou para Mario que era o chefe do serviço com quem contavam loas, piadas e, vez por outra saiam para o almoço em companhia de outros. Nesse dia ele, sem que nem pra que, se saiu com essa: “Mário, eu já posso morrer sossegado, pois comprei minha caminhonete D20 – meu sonho de consumo”. Parabéns, disse Mário, mas sem dar muita importância, pois carro na casa de Rafael era boia. Sua esposa, na qualidade de médica, sempre estava ali, por perto, cuidando do marido e da sua saúde. Diante dos insistentes apelos da esposa, ele começou a andar pelo Eixão chegando a caminhar em torno de 12 km por dia, num tempo de duas horas. Sem contar que alternava com bicicletas. Era como se diz, “geração saúde”, até porque ele aquele tipo que as mulheres costumam dizer se abanando todas: “um coroa enxuto”!
Certa ocasião, o Presidente da Instituição determinou que se fizesse um encontro multidisciplinar em Natal-RN, ocasião em que seriam discutidos novos processos de trabalho. Para esse encontro Rafael foi o representante da Sede no Distrito Federal. Concomitante, sua esposa foi fazer uma capacitação em Curitiba, pois lá estava acontecendo um encontro de Saúde do Trabalhador. Deste modo, Rafael foi pra Natal e a esposa pra Curitiba em missões diferentes.
Em Natal ficaram hospedados em importante hotel de luxo. Cada apartamento ficou com dois participantes e coube a Rafael ficar com um colega de outro Estado e que era médico. No primeiro dia foi aquele movimento de check-in, malas, banho, jantar, etc., bem próprio desses acontecimentos. À noite no auditório houve a abertura e após, um robusto coquetel com musica ao vivo e tudo mais. Essa comemoração foi até uma hora da madrugada quando um grupo de mais de 20 pessoas foram de taxi procurar um lugar pra dançar forró. Afinal, ir a Natal ou qualquer outra cidade do Nordeste e não dançar forró é como que ir a Roma e não ver o Papa. O motorista de táxi se encarregou de leva-los a um forró que ficava na orla, pertinho do forte dos Reis Magos. Mal o sanfoneiro começou a tocar, quem foi logo balançar o esqueleto? Ele, o engenheiro Rafa, pois era assim que na intimidade ele era conhecido. Dançava com uma colega, depois puxava mais outra e também estimulava os outros a dançar. Pouco tempo estavam todos lá, “relando o bucho”. Determinado momento, Rafa se senta, pede uma dose de uísque e bebe de uma golada só. Aproveitou que tinha uma colega sozinha e que ainda não tinha dançado e a convidou. Lá para as tantas, ele disse a colega: “não estou me sentindo bem”. –Temos médicos na equipe, quer que eu chame? – Não, acho que é só um mal estar que logo passa. Mas foram sentar e tomar uma água, quando ele disse que a coisa estava piorando, mas era estresse da viagem. Que iria dormir. Pediu a colega para avisar a seu companheiro de quarto. E assim fez. A noite quase querendo se entregar ao dia, os “congressistas fogosos” foram dormir, pois mais tarde tinha atividade intelectual.
No dia seguinte, estavam todos no auditório – uns abrindo a boca, outros com a cabeça encostada na carteira, outros de olhos arregalados, mas quando o palestrante chegou todos se animaram. Alguns ficavam os tempos todo indo buscar cafezinho para aguentar o trampo. O diabo é que não se lembraram de Rafael. Mas, engano. Imediatamente, sua amiga que com ele dançara por ultimo, foi na mosca. Pegou o microfone e disse: “gente, Rafael é uma das pessoas mais importantes para discutir esse tema”, mas por que ele não está aqui? Ontem ele saiu se sentindo mal e de repente ele pode estar precisando de ajuda. Nessa hora, seu companheiro de quarto disse que ele estava dormindo tão profundamente que teve pena de acordá-lo para o café da manhã. Diante dessa preocupação da equipe, o moderador dos trabalhos que também era da Instituição em Brasília, pediu para o companheiro de quarto de Rafael que era médico para ir até o quarto verificar se ele ainda estava por lá ou atrasado no café da manhã.
De repente ouve-se uma voz estridente: “gente, gente, Rafael está morto”, “Rafael está morto”. “Meu Deus, façam alguma coisa, Rafael está morto”. Fazer mais o que, se ele estava morto, pensou-se, certamente. Logo todos correrem em direção ao quarto em que ele se encontrava e em lá chegando o médico que dividia o quarto confirmou o pior: “de fato, Rafa estava morto e pelo que se poderia observar, falecera na madrugada, provavelmente de um infarto fulminante”, disse o colega dele que era médico. O curso foi suspenso. Avisou-se a sua esposa que estava em Curitiba. Na hora da notícia ela estava na frente dos colegas explicando uma planilha. Jogou tudo que tinha nas mãos pro alto e saiu como uma doida e os colegas atrás dela “mulher se acalme, mulher se acalme”. Mas não teve calma certa. Alguém marcou um voo direto pra Brasilia onde ia esperar o corpo que estava sendo providenciado seu translado para o Distrito Federal.
Após todas as providências de perícia médico-legal, embalsamamento e licença além de mil outras burocracias, finalmente o corpo é levado para o aeroporto de natal. Era uma sexta-feira e o corpo chegaria no sábado pela manhã para, imediatamente ser enterrado no Campo da Esperança – principal cemitério da capital ao Brasil. Ao chegar ao aeroporto, a Vigilância, como é de praxe foi fazer a conferência dos documentos e a inspeção de rotina. Surpresa: não era o corpo de Rafael. Meu Deus gritou feito louca uma grande amiga dele que também estava no evento. “Liguem pra Dr. Sebastião Leme que ele foi secretário de saúde daqui de NATAL e poderá nos ajudar”. Foi oque fizeram. Acionou-se o juiz de plantão e ele deu uma hora para a delegacia e o IML localizarem onde o corpo se encontrava. Juntaram-se policiais militares com peritos do IML e colegas de Rafael e foram em diversas bocadas ver se localizavam nos velórios daqueles lugares o corpo do Consultor. O IML teve a inteligência (pelo menos isto) de relacionar os bairros que houve liberação de corpos para as famílias. No segundo velório, numa favela perigosa, eis que estava uma família inteira velando o seu “ente querido”, sem saber que o corpo que velavam não estava ali. Até as beatas da igreja católica da favela estavam lá, desafinadas, entoando hinos que mais se pareciam com as incelenças cantadas pelas carpideiras de épocas remotas. Os familiares, coitados, receberam seu defunto naqueles caixões de pobre que não tem visor e, desta forma, acreditamos, não quiseram abrir pra ver o rosto, pois se dizia que o acidente de moto foi tão violento que o defunto ficou sem expressão facial capaz de ser velado. Por isto, caixão fechado a prego, os familiares não puderam descobrir que velavam um defunto que não era o seu. Mas quando o carro da polícia chegou com a equipe que abriram o caixão, quem estava lá? Ele, o coitado do Rafa. Faz-se a troca, mas para isto todo os que estavam velando tiveram que se afastar, pois o rosto do morto estava irreconhecível, pois o caixão de Rafael era pomposo, de luxo, e, desta forma não poderia deixar um caixão com tudo e levar o outro. Teve-se que fazer literalmente a troca retirando um defunto  e colocando o outro. Tudo resolvido ruma-se par ao aeroporto. Lá, o avião que levaria o corpo e grande parte dos componentes do evento, já tinha partido. O próximo avião foi sair lá para as 4h da manhã. Todos estavam exaustos, menos, claro, Rafa, pois seu destino tinha sido cumprido na terra e ele, certamente, talvez estivesse rindo de tudo que com ele aconteceu depois de morto.
Em Brasília o enterro foi transferido das 10h para as 16h. Gente de todo tipo foi ao velório, pois ele era muito conhecido pelos colegas Engenheiros e pelos demais colegas e pessoas mais simples da Instituição na qual prestava consultoria. Sua esposa, naturalmente inconsolável, não parava de lembrar que ele havia feito um check-up há uma semana e o médico disse que estava tudo bem. Sequer sua pressão havia alterado! Com ela os filhos, familiares, chefes e não faltou seu dileto confidente Mario – aquele que era chefe do setor pessoal. Finalmente chega a hora que poucos seguram a onda. Silencio total. O padre fez uma oração, recomendou o corpo e, de repente, uma voz: “se as águas do mar da vida quiserem te sufocar, seguras na mão de Deus e vá”... O caixão começa a sair em direção ao tumulo orientado pelos funcionários do cemitério. De repente, mais uma vez de repente, um SOM ensurdecedor e intermitente fica irritando a todos no trajeto do corpo em direção ao mausoléu. Todo mundo se entreolhava como que sem entender aquele apito estridente! Mário, memória boa, saiu de fininho e foi em direção do apito: para sua surpresa era a D20 de Rafael que não parava de apitar. Parava um pouquinho e apitava. Parava um pouquinho e apitava.
Quando a família retorna ainda aos prantos e foi pegar a D20 pra retornar pra casa, ela ainda estava “chorando” pelo seu dono – aquele mesmo que teria dito a Mário: “agora eu posso morrer tranquilo” pois consegui realizar meu sonho de consumo.
 
Conto baseado em fato real acontecido na Cidade de Natal.