A ETERNA LUTA

Já há vários dias encontrava-se naquela situação. Amarrado com cordas que já lhe haviam ferido os pulsos devido ao inchaço surgido, em decorrência da inatividade e circulação. As cordas que o imobilizavam só lhe eram tiradas quando lhe traziam a alimentação ou para fazer suas necessidades fisiológicas.

Explicações ninguém lhe dava. O carcereiro limitava-se a deixar a vasilha com alimentos, água e outra que era usada para suas necessidades, o que fazia com grandes dificuldades.

Sua mente estava confusa e suas recordações fugiam em razão do grande sofrimento que suportava.

Suas necessidades fisiológicas ficavam condicionadas ao aparecimento do carcereiro, quando lhe dava liberdade para que as fizesse. A vasilha, no entanto, só era retirada no dia seguinte, quando lhe traziam novamente alimentos.

O mau cheiro o incomodava, porém não tanto quanto às interrogações, sem respostas ou mesmo às dores a que estava sujeito em razão de sua imobilidade quase total. Ficava, às vezes, sem comer devido às náuseas que sentia as dores e o forte odor que exalava.

Nas visitas do carcereiro, tentara falar, pedir mesmo uma só explicação, no entanto, havia sido totalmente inútil. O olhar impassível do carcereiro até parecia não ouvir suas súplicas. Ele limitava-se a trazer o alimento e levar os excrementos.

Suas roupas, rasgadas e sujas mais pareciam andrajos a cobrir mais um flagelado, como muitos que há pelo mundo.

Quantos dias havia- se passado, não sabia. Perdera a noção e a conta dos dias e das noites, pois ambos se confundiam em sua mente cansada e exaurida.

Ali estava um homem, ou melhor, os restos de um homem, preso como animal. Perdera a noção do tempo e da própria dignidade.

Seus algozes não lhe permitiam que lhe dessem explicações sobre a situação em que se encontrava. Somente o carcereiro, como múmia impassível ao seu sofrimento, lhe visitava diariamente.

Tentara gritar por várias vezes, porém seu grito não encontrara eco ou ressonância, a garganta ardia como se houvesse ingerido pimenta.

De nada lembrava. Procurou relembrar os últimos dias antes daquele sofrimento, tentando descobrir o motivo de tudo, porém perdera suas lembranças e limitava-se a lembrar das dores do dia anterior.

Nem ao menos se recordava do nome, tudo era confuso e sua mente parecia fugir a todo instante em razão das dores e angústias que lhe afligiam.

Sons de passos, todos os dias, anunciavam a vinda de alguém e este de certo seria o carcereiro.

A chave pelo lado de fora da cela girou lentamente com os sons característicos de algo enferrujado. Sempre o mesmo ritual.

Abriu-se a porta lentamente e ele viu diante de si outro homem. “Teriam mudado de carcereiro ou aquele homem viera para lhe falar?”

Muitas perguntas acudiram à sua mente, que via na simples troca do carcereiro como principio de mudanças em sua situação ou mesmo esperanças. Tentou esboçar um sorriso como tentando conquistar a simpatia do seu visitante.

Este, porém, no entanto, entrou lentamente e com olhar fixo em si aproxima-se e desfere-lhe um soco no rosto, como que tentando desfazer de seus lábios o princípio de sorriso que tentara esboçar.

Fraco como se encontrava, foi arremessado para traz como um fardo, vindo a cair sobre os braços que já se encontravam feridos e doloridos.

Tentou falar, porém a dor lhe sufocava as palavras e apenas gemidos se ouviu. O visitante volta-se e se retira ante seu olhar suplicante, como que a implorar pela própria morte que, naquele momento, seria sua libertação.

Fecha-se a porta e somente no dia seguinte ela volta a se abrir e o carcereiro de sempre cumprindo o seu ritual, lhe traz alimentos e leva os excrementos.

Desejava a morte, pois já perdera as esperanças de liberdade. Já não ouvia seus gritos ou lamentos ou mesmo ruídos. O silêncio era seu companheiro.

Uma barata corria célere de um canto para outro, como que para humilhá-lo. Ela era livre. Ele, homem que era, jazia ali amarrado como um cão raivoso, sem poder falar, gritar ou chorar.

Teria família, alguém estaria preocupado consigo, onde estava? Nada, somente o vazio enchia-lhe a mente atormentada e sofrida.

A cabeça, a boca, os braços e todo o corpo doíam, devido ao sofrimento da posição em que se encontrava. Ou das torturas que decerto sofrera, pois já não se lembrava, exceto do soco que recebera no dia anterior.

Ouviu novos sons que pareciam ser de mais de uma pessoa, devido aos passos. Silêncio, a porta, os sons, a fechadura, o rangido das ferrugens. O ranger das dobradiças emperradas, dava aquele som tétrico de todos os dias. Todos os sons eram analisados, minuciosamente. Nada mais lhe restava a fazer do que conjecturas.

Abriu-se a porta e dois homens entraram, aproximaram-se dele e segurando-o pelos braços, ajudaram-no a levantar-se, o que conseguiu fazer com dificuldade por se acharem seus membros inferiores entorpecidos pela posição em que se encontrava.

Cambaleante, inseguro, tentou dar alguns passos, porém caiu, grande era sua fraqueza. Novamente levantaram-no e, amparando-o, levaram-no quase que arrastado através dos sinuosos e escuros corredores por onde andavam.

Por um tempo que lhe pareceu uma eternidade, levaram-no arrastando-o, devido à precariedade de suas forças que eram quase que nenhuma.

Pararam em frente a uma porta e após cinco batidas, abriram-na e entraram.

Após entrarem, soltaram-lhe os braços e ele ainda procura equilibrar-se, porém cai grotescamente sem ao menos conseguir defender o rosto que bate violentamente contra o solo, abrindo-se em conseqüência da queda, um corte acima do olho esquerdo.

Líquido grosso e pegajoso escorre-lhe pelas faces indo cair em sua boca. Sangue, sim o sangue de seu corpo, era como se fosse água a lhe mitigar a sede. Lentamente vira-se e com muito esforço e consegue ficar de joelhos como que suplicando pelo fim de seus sofrimentos.

O olho semi-encoberto pelo sangue que escorrera e coagulara em seus cílios obrigara-o a tentar limpar e neste momento cai novamente para frente, desta vez, no entanto, sem maiores conseqüências. Já se encontrava de joelho.

Corpo doido, cansado, faminto e humilhado vê-se frente a um homem que deveria ser o seu principal algoz.

Com muito esforço consegue esboçar palavras quase sem nexo:

- Onde estou o que está acontecendo, quem é você?

Aquele que se encontrava sentado confortavelmente, em seu trono com largo e cínico sorriso responde:

- Não sabes? Ótimo!

- Porque isto está acontecendo comigo, quem é você?

Pergunta ele em tom de súplica.

- Você está aqui para confessar e pagar por seus crimes.

- Crimes, quais se nem ao menos sei quem sou e nem como vim parar aqui?

-Mentiras! Por acaso me julgas um tolo? Não vê a tua situação e ainda tentas mentir, fingindo não saber quem és, tentando com isso me enganar?

- Por favor, pelo menos me diga quem sou e como vim parar aqui, pois de nada me lembro. Só tenho a lembrança de encontrar-me preso e amarrado e sem nenhuma outra recordação.

Sim, os sofrimentos pelos quais passara, apagara temporariamente as suas lembranças e esquecera-se de sua própria identidade. Tudo era um imenso vazio, um poço escuro sem fundo.

O Algoz levanta-se, e dirigindo-se ao prisioneiro com o dedo em riste diz:

- Por acaso se esqueceste, que vivias falando ao povo de coisas que eu julgo proibidas e que isto estava colocando em risco minha autoridade e poder? Esqueceste também que vivias falando da existência de Deus e que Ele seria mais poderoso de qualquer homem da terra? Acaso negas isto, se eu escutei tais palavras de tua própria boca, quando vieste a mim para explicar-se? Negas?

O prisioneiro, naquele momento, como que pela divina providência, recobra a consciência e diz:

- Sim, agora me recordo de tudo que se passou em seus mínimos detalhes.

- E então? Pergunta o algoz.

- Sim, tudo o que disse é verdade e nada poderá impedir que tudo aconteça e não será você, um simples mortal que irá alterar as determinações da Lei.

-Lei? Eu sou a lei.

O prisioneiro esboça um sorriso diante da prepotência e ignorância, encarnada em um só homem e responde:

- Tua lei é para ti e para os teus, porém a lei que eu represento sobrepuja todas as outras e nada lhe escapa nem mesmo os que se julgam donos dos destinos dos homens.

- Explique-se!

- Nada é preciso explicar, porquanto o próprio tempo se encarrega de tudo e nada que contrarie a vontade divina continuará. Somente o que for positivo perdurará além de ti e de todos os que durante todas as eras têm procurado opor-se à vontade da Lei. Os homens criam falsos ídolos, dogmas ou deuses, procurando, com isto, enganar pobres incautos que se acham perdidos neste mundo. Seu tempo é limitado, porém a Lei antecede a tudo que existe. E existirá enquanto houver evolução em qualquer parte do universo.

- Bobagens, bobagens, tudo isto que dizes não pode ser provado por ser irreal e não tem valor para mim.

- Sim, se realmente pensas assim, porque mandaste me prender e torturar-me, tentando sufocar minhas palavras que já encontram eco em seu mundo tão real e concreto?

O algoz, ouvindo aquilo se calou por alguns segundos, tentando encontrar palavras para contradizer o que acabara de ouvir e, não conseguindo, disse:

- Realmente você é perigoso e do perigo eu me desfaço, ainda hoje mandarei executá-lo, para que sirva de exemplo e seus ecos se acabem contigo.

O prisioneiro sorriu diante da ignorância e da prepotência daquele que se intitulava rei e disse:

- Sim, executa-me, queima-me como tens feito com outros iguais a mim e cada vez mais o que digo encontrará eco entre o povo. Apenas falo o que sei e tudo isto não depende de mim para existir, pois é real, eu apenas o apresento para o mundo. Vamos, executa-me e irás me libertar das atrozes dores que me martirizam o corpo e muito além de ti eu estarei presente, onde houver um homem que não se venda ou almeje apenas os simples prazeres que a vida lhe oferece .Cumpre o seu destino de algoz e carrasco de si mesmo. Enquanto ocupares a roupa que usas irá atormentar-se das suas iniqüidades e por gerações futuras minhas palavras ecoarão em seus ouvidos, a atormentar-lhe a alma até a consumação dos tempos.

Dizendo isto o prisioneiro cala-se e olhando para o alto sorri e sente-se como que agraciado com o mais fabuloso presente.

O Algoz, perturbado com o que ouvira, levanta-se e, aproximando-se do prisioneiro, empunha um punhal e crava-o no próprio peito, no mesmo momento em que sente forte dor e o sangue que brota em seu peito, escorre em sua roupa...

Cambaleando e tentando manter-se em pé, o algoz consegue, antes de cair, balbuciar suas últimas palavras:

- Agora entendo, agora entendo...

E caiu pesadamente para frente, vindo a morrer.

16/10/83–VEM.

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 23/12/2005
Reeditado em 11/04/2009
Código do texto: T89855