O casamento incompleto

Eis-me aqui, parada a olhar o vazio do céu noturno. Da porta aberta, o vento vem e afaga meus cabelos desgrenhados, enquanto relembro os últimos instantes em que te vi. Recordo-me bem da festa de nosso casamento, quando estávamos imersos na inocência de um sonho realizado, até que uma briga irrompeu repentinamente e a bala perdida tirou-o de meus braços. Desde então, sobrevivo só e confusa, na casa que construímos para viver num lar.

Certezas eu logo tive: casada e viúva de mesmo dia, mudei-me após seu enterro, recolhi suas roupas, arrumei suas ferramentas de trabalho, abri os presentes recebidos, enfim, consumei nossa união inacabada e me tranquei nestas paredes, longe de tudo e de todos.

O vestido de noiva, nunca tirei do corpo. Logo ele se desfez em trapos enodoados. A comida e a água que me traziam todos os dias, por dó ou curiosidade, me permitiram viver mais alguns meses para contemplar esse céu sereno e cobertor de todas as nossas vicissitudes.

Nas madrugadas solitárias, como um sonho esquecido, sempre deixei a clausura de nossa casa para buscá-lo na noite e nos esquisitos objetos encontrados nas andanças. Recolhi no quarto o que amealhamos: de gravetos a garrafas, de pedras a fragmentos metálicos, enfim, tudo que para os outros era lixo, para mim, era o que nos restou de testemunho da nossa existência. No quinto mês de sua morte, todos os cômodos da casa estavam entulhados de objetos inanimados, vindos do lado de fora do mundo. Mais dois meses e a casa se preencheu de lembranças recolhidas, a ponto de, ontem, eu precisar ter a porta da rua nas minhas costas e todo o resto a frente. Nas horas tardias, teremos o reencontro. Oferecerei meu corpo aos seus desejos. O meu prazer vem do céu, mas meu mal, de mim mesma, pois o belo é aquilo que cada um ama. Deixei-me morrer com meus pertences em nossa casa. Os vizinhos decidiram lacrar o sepulcro para sempre. Nesta casa em que moramos e cultivamos uma desventura, no fim, o resto é silêncio.