Alaska do esquecimento

Qualquer cidade que se preze tem uma história policial. Os infanticídios são as piores delas, mas não ficam muito atrás os uxoricídios, um cônjuge que mata outro cônjuge, e os homicídios-autocídios, estes conhecidos como o crime de matar alguém e de se suicidar logo depois.

Minha pequena cidade não fugia à regra.

Tivemos vários que engoliram formicida (não sei porque as mulheres preferem ingerir soda cáustica que nem sempre mata de primeira, mas deixa feia para o resto da vida), alguns enforcados e outros tantos que usaram a banheira com a faca só nos pulsos, pois acho eu que morrer limpo é sempre bom e nos braços doí menos.

Lembro-me bem da morte da querida professora de piano, uma discípula de Chico Xavier, que teve provas pessoais direto dele de ter vida pós-morte, até que um dia, saltou do quinto andar. Mas acho que esta história não vale contar, mesmo sendo ela adepta do espiritismo kardeccista. O caso ainda me gera suspeitas de não ser bem um suicídio.

Contudo, todos estes se banalizaram perto do que vimos hoje. Podemos dizer mesmo que ficaram para trás desde hoje, com essa ocorrência policial estranha.

Eram dois moradores vindos da capital paulista. Deixaram por lá toda parentada, por desavença. Tinham uma comportamento recluso. Diziam que eram pai e filho, mas há quem diga que eram irmãos. Inequívoco era o diagnóstico do mais velho: esquizofrenia. Das bravas. Algumas vezes foi pego abusando das benzodiazepinas, há quem diga. Sei lá, dizem demais.

Um dia, sem mais, nem menos, deixou um bilhete na porta dos fundos com o aviso dos corpos que seriam encontrados na suíte, trancou a casa inteira, vedou as entradas de ar, as torneiras idem, os forros e as frestas das janelas. Tudo planejado para o cheiro não sair, mais premeditado impossível. Acredita-se que o mais velho matou o mais novo, irmão ou filho. Cobriu-o bem, tudo leva a crer que sufocou-o antes, pode ser com as cobertas ou travesseiro. Terminou o serviço de lacração da sua casa, ou quem sabe para ele, do seu mausoléu.

Então, ligou o gás de cozinha do fogão. E morreu, na prática, um homicídio, seguido de autocídio. Deixou os bilhetes para a posteridade crer que a morte não encerra a consciência. O primeiro dizia:

- Estamos aqui na suíte, mortos. Entrem e mostrem com respeito e oração. Não queremos curiosos aqui. Só pessoas envolvidas diretamente. Mais ninguém.

Outros se seguiram no trajeto dentro da casa até a suíte:

- Não queremos a mídia televisiva aqui. Não avisem.

Não podia deixar de ter um bilhete para uma desafeta:

- Não queremos a Rosângela aqui. Não avisem. Não temos contato com ela há muitos anos.

O bilhete final na suíte foi taxativo:

- Queremos ser sepultados um ao lado do outro. Respeitem o corpo do meu amado filho. Estarei aqui observando tudo e a todos. Podem acreditar!!!

As últimas palavras ora repetidas, podem acreditar, isso aconteceu, talvez, há dois anos atrás. Só hoje foi descoberto . Só hoje, acionado pela municipalidade para ver o abandono da casa, veio um irmão com um chaveiro para abrir a casa, quando este viu o primeiro bilhete na porta dos fundos, chamaram a polícia, as ossadas foram encontradas na cama, um com a cabeça para cima, outro para baixo no colchão, os esqueletos com suas roupas no momento do fim da vida há cerca de dois anos. Ossadas apenas, sem carne, restaram cabelos no mais velho, o mais jovem não tinha. Corpos secos sem cheiro, quietos e frios fragmentos humanos inanimados. Ninguém percebeu a falta deles pela cidade. Morte e vida lacrada, esquecida e encerrada. Seus cadastros municipais na assistência social ou na área de saúde estão lá. Seus vizinhos, amigos ou curiosos, não existiam, mas estão lá. Luz, água e impostos atrasados, mas as empresas estão lá. Menos para eles, a vida continua, com foguetórios e carreatas antes da estreia na Copa do Mundo: as alegrias, os amores , as dores e os dramas estão lá.

Jesus, como pode a cidade ficar aturdida. Isso somente se explica se for pela consciência da omissão individual ou coletiva. A frieza do esquecimento assusta. O rio Lete, que carrega longe as lembranças, passa por lá agora. A pequena cidade tem as mais altas taxas de suicídio do Brasil, na faixa de 33 por 100.000 habitantes/ano. O Brasil tem seis vezes menos isso. Como o isolamento e a ausência de solidariedade são imensas nos dias atuais em todos os lugares. Sempre tem onde a solidão é maior ou ignorar a existência do outro é a regra. Pode ser esta a explicação: noites escuras e geladas de uma cidade fria. Cadê todo mundo, nas horas mais perdidas da existência humana? A ajuda, que não veio em tempo, chegou dois anos depois para varrer a sujeira do esquecimento daquele colchão e virar o rosto.

Sintoma social da localidade ou não, e contando assim, nada tem de forte nesta história real. Entretanto, hoje mesmo, havia quem acreditasse ter visto os mesmo dois irmãos, à perambular pelas ruas. O mais velho gritava ao caçula:

- Ajuda-me você que morreu tranquilo… que eu não me matei sozinho!