Defenestrados

O verbo defenestrar é definido como o ato de arremessar alguém pela janela. É uma ação concreta que só se origina quando alguém deixa o recinto à força pela janela ou varanda da instalação, nunca pela porta pela qual se entra e sai. O defenestrado corre risco total de morte na ação, mas é o emblema da sua expulsão violenta do recinto que a caracteriza. Todo defenestrado é primo do guilhotinado, do fuzilado no paredão , do enforcado ou do executado em cadeira elétrica, porém sua repercussão é real definidora dos fatos que se seguirão, principalmente pela sinalização intrínseca da atitude daqueles que a executam.

São famosos os exemplos na história. A guerra dos trinta anos que assolou a Europa de 1618 a 1648 foi desencadeada entre a Liga Católica e a União Protestante após a "defenestração do Castelo de Praga". Este episódio histórico seria hilário, caso não fosse dotado de desfechos trágicos nos trinta anos seguintes e mesmo, de requintes exotéricos. O rei Fernando II , arquiduque da Áustria e imperador do Sacro Império Romano enviou dois conselheiros católicos, Vilem Slavata de Chlum e Jaroslav Borzita de Martinice, como seus vice-reis para o castelo de Hradcany (ou Hradschin no alemão) em Praga em maio de 1618 para que administrassem a Boêmia protestante. Eis que, em 23 de maio de 1618, após a destruição de uma capela luterana em construção, uns protestantes revoltosos invadiram o castelo, atirando-os pela janela do palácio, de uma altura de dezoito metros até o fosso, onde se encontrava um monte de esterco, por pura maldade ou devido a providencial intervenção do Espírito Santo. No impacto, embora feridos, eles sobreviveram, emporcalhados ou ungidos, nunca se saberá. Dessa revolta para uns e dessa infâmia para outros, o conflito religioso acabou por se espalhar por todo o continente europeu. Foi o mais célebre episódio de defenestração, porém não o único na história. Portugal teve vários. Bem antes de Praga, no ano de 1383, chegaram relatos de que o bispo de Lisboa, D. Martinho de Zamora, originário de Castela, foi atirado pelas janelas da Sé de Lisboa pela população enraivecida. Posteriormente, na Itália renascentista, os irmãos Giuliano e Lorenzo di Médici sofreram um atentado na Catedral de Florença, em que o primeiro morreu e o segundo, em vingança, mandou que atirassem pela janela do palácio, os assassinos do irmão para serem despedaçados por uma população histérica. Por fim, é conhecida a história do de Badruddin Akbar,da dinastia turco/mongol, o rei do Industão, ou apenas, Akbar I , que governou a maior parte do subcontinente indiano no final do século XVI, praticando uma justiça severa na lei e no exemplo. Numa condenação proferida por ele, mandou arremessar seu irmão adotivo pela janela, após homicídio torpe de um general, por aquele realizado num golpe de estado. Ao cair, não morreu, então o rei ordenou que fosse atirado novamente para ter a morte. Akbar I entrou para a história não como o eventual inventor da casa pré-fabricada, mas por conseguiu unificar sob o seu poder todo o norte e região central da Índia. É conhecido na história indiana, particularmente, pelo fato de ter conciliado as três maiores religiões do mundo: O hinduísmo, o islamismo e o cristianismo. Para tanto, casou três vezes, sendo cada esposa adepta de uma destas religiões. Assim, da Pérsia trouxe consigo uma esposa muçulmana, na índia casou com uma das filhas do rei hindu de Jaipur , e de Goa uniu-se a uma tal Maria Ana, vinda de família cristã de ascendência portuguesa. Essa esposa cristã tinha uma igreja, a esposa hindu tinha várias capelas para cultuar diversas divindades hindus e a muçulmana tinha a mesquita inteira, das maiores e mais belas da Índia, em Fatehpur Sikri. Seu neto e sucessor, Shah Jahan, foi mais longe que o avô, ao construir o monumental Taj Mahal, mas esta já é uma história de amor, não de defenestrações.

Em Portugal, foi contada outra defenestração, aliás a que mais gostei de conhecer, porque ocorreu durante a restauração da independência, iniciada em 1637 na panfletagem anônima conhecida como “revolta do Manuelinho” e que finalizou a união ibérica em 1640, com a independência definitiva de Portugal. Foram cerca de quarenta conjurados que entram no Paço da Ribeira, procuram o secretário de estado, Miguel de Vasconcelos, e matam-no a tiros. Em seguida atiram-no das frondosas janelas do Paço da Ribeira para o terreiro liso do Paço. Um ato simbólico repleto de conteúdo nacionalista, pois já era morto. A união ibérica estava enfraquecida pela guerra dos trinta anos, nos quais suecos, ingleses, franceses e holandeses investiam contra a coroa espanhola dos Habsburgos. Uma revolta na Catalunha (mais uma) irrompeu ao mesmo tempo da conjuração portuguesa. O golpe de estado de fato se dá em Portugal, após a defenestração, obrigando a duquesa de Mântua, prima do rei e vice-rainha de Portugal, a escrever ordens de rendição para as guarnições castelhanas do Castelo de São Jorge e fortalezas do rio Tejo. Vindo de Vila Viçosa, trazem à Lisboa o duque de Bragança, bisneto de Manuel I (da casa de Avis), aclamado Rei de Portugal, com o título de D. João IV (agora da casa de Bragança). Contudo, só em 1666 a Espanha reconhece a independência de Portugal, depois de derrotada militarmente. Eu, pessoalmente e tal qual o ibérico José Saramago, ainda torço pela união de Portugal e Espanha, evoluindo até uma confederação ibero-americana. Seremos então um bilhão de cidadãos ibéricos no planeta, com o espanhol castelhano como idioma principal e as linguas portuguesa, brasileira, catalã, galega, criola, euskádico, etc como dialetos. Mas isso são outros papos.

De uma defenestração para outra, o ato de defenestrar combina perfeitamente bem com golpes de estado. Defenestrar é ação emblemática para iniciar revoltas que se passam longe da população. É um ato de força e opressão, com simbologia diversa para quem executa ou fica sabendo, ora gerando revoltas recorrentes, por vezes trazendo incentivos incontrolados à mudança. Defenestrar, sem ser ato político, é crime de lesa-humanidade, posto que, se um governante que rouba fortunas é lançado pela janela fora, arranca aplausos nas democracias, agora, experimente uma madrasta defenestrar sua enteada de oito anos e terá um crime abominável.

Os defenestrados, pobres ingênuos, nem imaginaram ser a matéria-prima de um modo único e sobre-humano de execução sumária pela janela.