Os perseguidores de Próspero

Dante Alighieri trouxe Virgílio dos mortos para ser o guia através do inferno e do purgatório na "Divina Comédia". Com todo seu talento operacional, Virgílio Próspero, investigador de polícia no Brasil, trouxe todos os seus apetrechos da moderna ciência forense e mentais para a cena do crime. Não que precisasse. Nenhum deles. Os corpos inertes aos pés de Próspero não deixavam dúvidas de ser mais um desfecho criminoso cruel.

Na Guiana, mais precisamente em Jonestown, foram 918 mortos naquele ritual macabro de suicídio coletivo em 18 de novembro de 1978. Destes, só mesmo as 304 crianças mortas, ao ingerirem suco de uva com cianeto e sedativos, dados pelos adultos, compuseram o quadro de homicídio, dezenas deles, de infanticídio. O apocalipse nuclear foi o motivo da autoflagelação de lá. O verdadeiro motivo, o começo do precipício, digamos assim, pode ter sido a negativa de realocação da seita nos países da "Cortina de Ferro", à época. O assassinato do congressista Leo Ryan, de três jornalistas da NBC e de uma "rebelde" da seita pelo guarda-costas do líder espiritual, reverendo Jim Jones, foi o estopim. Para Jim Jones, o mundo estava de pernas para o ar quando virou as costas para o "Templo dos Povos". O governo dos Estados Unidos era o Anticristo, numa disparada em direção ao fascismo e ao capitalismo como um regime econômico demonizado.

Autocídio coletivo. O cenário do crime agora estava recriado em Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil, quarenta anos depois, na cidade que foi eleita pelo reverendo Jim Jones como um dos lugares mais seguros numa guerra nuclear. Lá instalou um templo, em modesta casa de três quartos e este lá cresceu. Quando ali esteve em 1961, Jones tomou cuidado para manter um estilo de vida comunitário apostólico, postura essa que foi seguida por seus representantes ao longo dos anos, bem como por todas as igrejas evangélicas que se sucederam. Em BH, a seita resistia, atualmente com centenas de milhares de adeptos. Jim Jones constituiu outros templos no Rio de Janeiro, desde 1963, em geral nas comunidades carentes dos morros do complexo do Alemão e dos Macacos. Em BH e no Rio, Jones também explorou o sincretismo das religiões brasileiras. O suicídio em massa continuou sendo, prévia e ostensivamente, ensaiado em eventos simulados chamados "Noites Brancas". Durante as "Noites Brancas", os membros do ritual bebem um líquido, supostamente venenoso, porém de leve teor alcoólico, quase inebriante, lembrando um "biotônico". Vestidos de branco, reforçam o destemor da morte com muita dança e música, pois, há alegria e descontração em cada aproximação com o divino.

Próspero chegou no templo de BH algumas horas depois de cerca de duas dezenas de pessoas ingeriram suco de uva com cianeto. Aqueles que fugiram da morte naquele momento relataram-lhe que trabalhavam em projetos sociais da instituição religiosa e de outras seitas conexas ou em empresas de radiodifusão, ligadas a diversas igrejas pentecostais. No entanto, o que acendeu uma centelha na mente de Virgílio Próspero foi saber que a seita era proprietária de fábricas de refrescos e de isotônicos, mas principalmente, era sócia dos famosos sucos de uva "Dos Anjos", com a liderança de vendas e distribuição em todo Brasil. Graças a seu poder de persuasão, não demorou muito para descobrir que o "Templo dos Povos” era uma verdadeira " fábrica de crentes" porque mantinha ramificações em dezenas de outras igrejas evangélicas, algumas delas com nomes absurdamente esdrúxulos: Igreja Evangélica dos Quatro Costados, Igreja Recidiva de Amor, Assembleia dos Pastores Rainbow e até a famigerada, Igreja Evangelizadora da Noite Branca. Esta, a controladora da empresa "Sucos dos Anjos". No envoltório das igrejas, existia uma larga leva de políticos eleitos nas três esferas dos poderes Executivo e Legislativo nos estados da região sudeste do país. Tudo estava desvendado: os crentes mortos eram integrantes de um culto macabro na igreja que formara a maior parte dos pastores e outras igrejas evangélicas pelo Brasil. O suco ingerido era de um grande fabricante que tinha a igreja como sócia. Como e por quem o veneno foi colocado era o que lhe faltava descobrir.

Receoso do poder político envolvido, o precavido Próspero subiu de nível decisório. Conseguiu acesso ao gabinete do Procurador Geral do Estado para apresentar seu relatório da tragédia, bem como as evidências coletadas. Foi então que a chefia da polícia civil retirou Virgílio Próspero da investigação com a entrada de equipe especial da Polícia Federal, devido a hipótese de crime de terrorismo em andamento. Diziam que haviam indícios de envenenamento externo dos sucos de uva ingeridos no culto, portanto tipificado homicídio qualificado, não mais um suicídio por extremismo religioso. Mesmo se acreditasse nos novos indícios, sem a menor dúvida, sentiu um movimento de abafamento do caso. A polícia federal sequer checou as igrejas relacionadas por ele, as fontes de informação foram dispensadas e os dados históricos por ele trazidos foram parar não se sabe onde. As forças políticas estavam em franca atuação. Restava afastar-se do caso, assumir outros, mas não foi o que fez. Preferiu agir por conta própria, dissimulado, porém invasivo. Havia uma correlação clara com o finado reverendo Jim Jones e sua igreja no Brasil. Buscou e obteve apoio externo na universidade particular, na qual lecionava na cadeira de bioquímica forense. Aos superiores simulou investigar roubo de cargas para visitar a principal fábrica dos "sucos dos anjos" no Rio de Janeiro, se passando por pastor da "Congregação Piramidal", uma igreja recém inventada. Seu objetivo era de suprir o culto de seus quatro templos com artigos da linha dos anjos. Conseguiu receber a exclusividade de representação na região oeste de Minas Gerais e numa universidade, aproveitando-se de seus conhecimentos de programação neurolinguística avançada, assim como de sua condição de professor naquela instituição de ensino.

Na primeira entrega de produtos, dias depois, o furgão foi enviado para o laboratório universitário, amostras foram extraídas de cada produto e um perfil estatístico foi elaborado nas sete outras cargas recebidas. Os resultados cromatográficos foram arrasadores. Os sucos de frutas possuíam elevados teores de alucinógenos diversificados, o isotônico possuía traços de sedativo e o artigo específico para cultos evangélicos, conhecido como "Suco de Uva dos Anjos", registrava frações mínimas do barbitúrico Pentobarbital, o qual pode ser letal para os seres humanos que não desenvolveram tolerância fisiológica. Nada de cianeto. Refez a explicação do crime em BH. Possivelmente, um líder local do "Templo dos Povos" foi quem surtou com a data da efeméride: 18 de novembro. Próspero percebeu que havia descoberto o "modus operandi" de uma organização criminosa, com delitos em curso, de caráter nacional, capitaneado pela antiga seita de Jim Jones que resistiu oculta no Brasil, infiltrada em quase todas as igrejas evangélicas de destaque nacional.

Não teve mais tempo de pensar em como proceder à frente. Um grande tumulto no laboratório por homens bem armados. A Policia Federal invadiu o recinto e deu-lhe voz de prisão, acusando-o do crime de homicídio triplamente qualificado e terrorismo no "Templo dos Povos", em Belo Horizonte no dia 18 de novembro de 2018, quarentenário do suicídio em massa da Guiana.

Virgílio Prospero foi encarcerado. Ficou incomunicável, exceto pelo advogado que o assistia. Foi denotado como um comunista, adepto do terrorismo internacional, um assecla remanescente do reverendo Jim Jones no Brasil, infiltrado na polícia civil e no ambiente universitário. Chegaram provas da CIA e da NSA, incluindo vínculos com Jim Jones, pré-1978. Foi atribuída a ele uma gravação em que repetia a famosa frase final de Jim Jones: "Nós não cometemos suicídio; cometemos um ato de suicídio revolucionário para protestar contra as condições de um mundo desumano." A prova mais contundente, por incrível que pareça, foi o estoque de sucos envenenados que mantinha no laboratório da universidade, cuja utilização em cultos no Rio de Janeiro ocorreria em breve, segundo delatores, mediante promessas de liberdade: Próspero envenenaria centenas de missionários perante milhares de pessoas, junto com o atual prefeito, o futuro governador e o candidato a presidente, num único evento evangélico.

Seu cárcere provisório foi breve. O julgamento foi precedido de ampla divulgação pública de suas intenções, baseadas em provas, na sua confissão de meios de ação por uso de programação neurolinguística e na delação de seus comparsas, encontrados na universidade e na fábrica carioca dos Sucos dos Anjos. As igrejas, nem menção. O julgamento teve cobertura midiática, com ênfase em TV e radiodifusão. Os políticos da bancada evangélica asseguraram o acobertamento de leis de liberdade de culto religioso e deram garantias da polícia judiciária para execução de rituais. As empresas de refresco, sucos e isotônicos estenderam seus portfólios nos sabores de frutas exóticas da Amazônia brasileira.

No epílogo do julgamento, restou a Virgílio Próspero parafrasear em sua defesa: " Agora que minha mágica está terminando, apenas minha própria força permanece, que já é pequena..."

Condenado a trinta anos de prisão em regime fechado em penitenciária federal de segurança máxima, Virgílio Próspero não perdeu as esperanças. Ainda tinha armas para lutar por seus ideais, quem sabe agora na ilegalidade, com muito mais força, afinal, mesmo o planeta Terra continuava a fazer o que melhor sabia: girar no seu eixo.