Os presos de Próspero

"Num regime tão rigoroso, qualquer senão na parte assistencial, o preso reclama com intensidade e com todo direito." Foi o primeiro pensamento de Virgílio Próspero assim que se lembrou de usar o seu poder pessoal de persuasão, quando chegou na penitenciária federal de Rondônia, em Itapuã do Oeste. Suas informações pessoais o precederam nas pessoas certas do lugar. Percebeu que teria ali o espaço suficiente para aprimorar seus dons entre tantas mentes subvalorizadas, apenas aguardando pessoas hábeis o bastante para se deixarem conectá-las num fim determinado. O primeiro destes, o diretor, logo se conectou. Em seguida foi a vez dos "sete samurais".

O cumprimento de pena em um dos quatro presídios de segurança máxima do sistema penitenciário nacional no seu crime tipificado estava definido desde a Convenção de Palermo na Itália, quando o crime de terrorismo foi agregado à gestão prisional federal, conjuntamente com o tráfico de entorpecentes e o comércio ilegal de armas. Pela primeira vez no Brasil, um terrorista estava no mesmo espaço prisional com dois outros ramos de organizações criminosas mais poderosas e muito mais dinheiro envolvido. Haveria de aproveitar esta situação. Essas unidades penitenciárias foram criadas para recolher os presos mais perigosos, líderes de organizações criminosas, pois mesmo com a máxima segurança na esfera estadual, eles continuavam no comando ativo de dentro dos presídios. Virgílio estava agora a pouca distância deles.

A ambiente violência contida recendia odores de uma virulência rancorosa, sob a égide das " 122 regras de Mandela”, conhecido como um conjunto de “regras mínimas para o tratamento de presos”, estabelecido pela ONU em 1955. O nome do documento homenageia o legado do ex-presidente da África do Sul, Nelson Rolihlahla Mandela, que passou 27 anos na prisão durante sua luta pelos direitos humanos globais, pela igualdade, pela democracia e pela promoção da cultura de paz.

Sua situação de ex-policial civil levou-o ao isolamento, se bem que um recinto muito diferente de uma prisão. Seu trabalho prisional era uma dualidade, ora na colaboração com as autoridades para antecipar ações criminosas pelo Brasil afora, como também, e disso tinha certeza, numa verdadeira atuação para os fins de interesse do crime organizado. Suas ferramentas era a atualização diária dos perfis comportamentais dos presos e os ataques de engenharia social na gestão do presídio, das quais era mestre. De um lado, estava o oficial, de outro, vigorava a realidade. Em ambos, era um importante pivô de tudo o que se seguia, ação e reação, de um ou do outro lado, se é que existiam separações formais entre eles.

Neste ínterim, a inteligência do sistema penitenciário federal descobriu como se efetuavam as comunicações entre os apenados, confirmado num êxtase de eficiência já no seu primeiro trabalho de monitoramento facial e labial de presos: trocas de bilhetes cifrados entre os cárceres mais vigiados para os menos expostos, lançados por "teresas", panos enrolados em formato de corda, de uma cela a outra. Depois, pessoas que davam suporte aos presos nas visitas se encarregavam de distribuir ao destinatário externo. Desde então, a vigilância ficou mais rígida nas celas e as visitas aos envolvidos foram proibidas por ordem judicial, mesmo da parte dos advogados de assistência, sob protestos nervosos da OAB.

Virgílio Próspero captou a crescente explosividade entre as lideranças dos presos, depois da restrição de visitas. Sabia que era proposital. As conversas ficaram esquisitas. Estilingue, passarinhos, filhotes, ninhos, migalhas, ovos e omeletes. Percebeu que queriam sangue de alguém. Que não fosse o seu. Haveria sangue, alguns pagariam. Seria lá fora, na sociedade. Diante do problema no fluxo informal de comunicações, os líderes na prisão buscaram alternativas: a primeira delas, era o preso Próspero. Precisavam obter sua ajuda. Por isso criaram um código óbvio que Próspero logo decifrou nas conversas: quando diziam "filhote" era sobre ele, as "migalhas" eram as informações e o termo "passarinho" significava enviar as informações para fora da prisão, "ovo" era dinheiro, ”omeletes" eram matanças, e assim por diante. Um código primário de palavras chaves vinculados a objetos. Sabia que estava sendo monitorado. Tudo que fazia era visto, ouvido e gravado pela Polícia Federal. Contudo, as mensagens que queria passar adiante saiam nos textos de seus relatórios diários. Assim idealizou. Criou cifras. Alguém que os lesse e fosse comprometido com os “sete samurais" saberiam traduzir sua mensagem cifrada, dando a sequência desejada por eles. Então, começou a ajudar ativamente. Logo a pressão interna voltou aos níveis suportáveis de antes. Os recados para as organizações de cada um pelo Brasil recomeçaram a fluir e próspero era sempre o melhor canal. Às vezes, usavam outro caminho apenas para desviar suspeitas. Era assim que agia o engenheiro social, como um mágico que engana seu auditório, que deseja por entretenimento ser enganado pelo ilusionista. Tinha solidificado seu papel à frente da captura de dados dos presidiários para a polícia federal e como o entroncamento das ordens dos presos para fora da penitenciária. Tinha a anuência de cada lado, cada qual dissimulando suas ações, sob as orientações do especialista.

Da parte de Virgílio Próspero, como um ex-policial, não tinha ele os mínimos problemas de consciência por suas atitudes sacrílegas à antiga profissão. Era vaidoso. Sobreviver importava menos do que sentir seus poderes cada dia mais desenvolvidos ou imprescindíveis os grupos sociais nos quais participava.

No seu íntimo, pensava " Sempre soube que 90% dos ex-detentos pesquisados procuram emprego nos dois primeiros meses, após a ordem soltura. Depois de lhes baterem com as portas na cara, voltaram ao crime. Estudos mostram que 70% daqueles que saem da cadeia, reincidem em delitos. Já 70 % dos adolescentes infratores podem ser reinseridos à sociedade como pessoas de bem. O ideal é não existir prisões para estes, só escolas. Uma prisão existe por castigo e não para castigar. Eis a essência da falência da administração de penas privativas de liberdade no Brasil. Muitos presos se encontram esquecidos, já com suas penas cumpridas. A superlotação é inevitável, pois entram mais apenados do que saem libertos. O efetivo prisional incorpora um preso a cada 30 minutos no país. A entrega de novos estabelecimentos adequados é demasiado lenta. É mais fácil ampliar as vagas por metro quadrado, reduzindo o espaço individual, superlotando celas, sem a menor estrutura para tal. O Estado tenta realizar na prisão, durante o cumprimento da pena, tudo quanto deveria ter proporcionado ao cidadão, e oportuna e criminosamente, deixou de fazê-lo. Peca por não construir escolas ou investir mais na educação infanto-juvenil, preferindo gerir ineficazmente os presídios e a execução criminal no futuro, assim justificam os aparatos repressivos e judiciais permanentemente poderosos no Estado. É neste mesmo Estado inteiramente conivente ao crime, ao manter as penitenciárias que fabricam delinquentes sempre mais perigosos e condenados sem captura nas ruas, que se tira proveito dos crimes que são planejados de dentro das cadeias pelos presos que comandam quadrilhas. Há quem diga que policiais, advogados, juízes e promotores mantém assim seu prestígio social e muito mais. O Estado não se julga responsável pela obrigação de recuperação do condenado e não acredita realmente que a sociedade somente se sentirá mais segura quando medidas de recuperação de presos tornarem-se verdadeiramente eficazes."

Virgílio Próspero recuperou o seu propósito de vida no cárcere, feito Nelson Mandela, que em certa época livre de sua vida ostentava uma barba e até vestiu uniforme camuflado, ao estilo do guerrilheiro Ernesto Che Guevara, para depois, vestir uniforme de presidiário número 46664 por vinte e sete anos.

"Você não encontrará nenhuma paixão se se conforma com uma vida que é inferior àquela que é capaz de viver." Entre uma e outra citação do líder sul-africano, ousada e perigosamente, se mantinha vivo na penitenciária federal de Rondônia.