As cores de Próspero

O sol na Amazônia trazia ao dia uma singela luminosidade. Havia policromia em todo lado com tanta luz, mesmo dentro de uma prisão ou visto pelo circuito fechado de TV. Lembrou-se de algo inusitado. Na antiguidade faltavam tintas e corantes, mas isso não foi empecilho para a fixação de cores nas estátuas helênicas. Elas não eram brancas como são hoje. Leu em algum lugar que os estudos mais recentes de arqueologia demonstraram, na maior parte das estátuas de mármore em Atenas e em muitos dos elementos arquitetônicos clássicos pela Grécia, a presença de cores. Sim, deuses e divindades mitológicas clássicas eram coloridos! Foi aí que descobriram que os pigmentos desapareceram completamente com o passar do tempo ou com a ação da radiação solar ou outras intempéries, dando origem a um outro mito moderno de esculturas ou monumentos arquitetônicos monocromáticos. Olhando bem, nada do que é branco é verdadeiramente albino. Tudo não passa da ilusão da matéria, nada mais do que a ironia das ondas, captadas no espectro visual, nos fazendo graça. Assim é que todas as existências neste universo não passam de matéria e de onda, num balé bizarro que intercala aleatoriedade e harmonia. Apesar do caos, tudo está no seu devido lugar para existir. Por causa disso, concluiu o raciocínio, nada do que é real está ameaçado e nada do que é irreal existe.

Sua aparência física nunca esteve tão modificada. Quando investigador de polícia e professor universitário, Virgílio Próspero tinha uma silhueta atlética, altiva, cabelos escuros e barba longa, visualmente uma similaridade com o guerrilheiro "Che Guevara", nos seus últimos tempos, bem naquele semblante emblemático das camisetas dos jovens idealistas dos anos 80 e 90. Durante o seu julgamento por crime de terrorismo, sua orientação jurídica recomendou uma mudança radical naqueles cabelos rebeldes e barba por fazer. Rapou tudo, mantendo apenas um cavanhaque à perfeição. Aparência sisuda, rígida e intelectualizada, transmitia autoridade. Pobre coitado, não teve chance alguma: condenado à pena máxima, chegou à penitenciária federal com a cara dos demais presos. Arrebatou um aspecto transgressor, mais agressivo, um típico rosto de "gente ruim", diriam alguns que o conheceram antes. Por emagrecer mais de quinze quilos, agora possuía um corpo menos atlético, mais para alguém que beira a idade de trinta anos, cinco anos a menos do que tinha. Um terço de sua vida já se passara, pensou um instante. Se sobrevivesse aos trinta anos ou menos de sua pena, quando poderia pleitear liberdade com a revisão da condenação, mais uma terça parte de sua vida teria passado longe da convivência social. Restaria cerca de trinta anos para recomeçar de onde parou ou de muito atrás. O paradigma do retorno de um ex-presidiário à socialização refletia perspectivas mínimas de sucesso na sua mente. Na condição de um "recuperando", desde sua chegada insólita ao sistema penitenciário, em seus pensamentos formara um paradoxo: "se você quer se dar bem, realize o mal". Denunciar os presos capazes de desfechar rebeliões, repassar a comunicação dos líderes das quadrilhas de fora do presídio e tornar-se a figura necessária na manutenção do equilíbrio de forças criaram contradições perigosas. O que sabia era que não desperdiçaria os anos prisionais como faz a maioria dos presos. Seus contatos e seu vigor intelectual o colocavam num ponto de convergência de poder que nunca teve antes, nem supôs algum dia ter.

Foi assim que se percebeu integrado aos mais de setenta grupos organizados no sistema penitenciário nacional como um coadjuvante importante. Quando o Ministério da Segurança Pública desfechou medidas centralizadoras para coibir o crime organizado de dentro dos presídios, objetivando atrapalhar o crime disseminado no seio da sociedade, todos as quadrilhas se fizeram representar na Penitenciária federal de Rondônia, pois ali e só ali, existia um elo "tradutor de informações" que estabeleceu um fluxo confiável de dentro para fora do sistema. Várias lideranças no país deram um jeito para transferência para Rondônia em busca para assistir ao sol quadrado da Amazônia.

Por todo Brasil, os roubos de cargas estavam mais reprimidos por coordenação em forças-tarefas. De dentro da penitenciária optaram por manter o fluxo de recursos às organizações criminosas, priorizando a explosão de caixas eletrônicos em pequenas cidades de diminuto contingente policial militar ao risco de desarticulação do desvio de cargas nas rodovias de acesso às capitais, que, pelo recrudescimento da ação policial, muitos deles ladrões e receptadores em ações privadas, colocava em risco o fluxo de drogas aos mesmos polos consumidores. A ordem partiu nas conversas do pátio de banho de sol por linguagem verbal direta que Virgílio Próspero identificou na leitura labial dos principais chefes e logo chegou às ruas. De uma semana para outra, despencaram os casos de repressão ao roubo de cargas. Novos municípios relatavam explosões de caixas eletrônicos e roubo de carros-fortes no momento de abastecer as cabines. As autoridades policiais estavam atônitas. As notícias chegaram a Virgílio, sem perceberem seguramente que ele tinha o dedo nisso.

Em diferentes localidades foram usados lançadores de mísseis modelo AT-4 para explodir carros-fortes e cabines de caixas eletrônicos.

Um temor residual varreu o Brasil. Pessoas amedrontadas em todos os níveis sociais buscavam o isolamento em seus lares. Até os juízes saiam mais cedo dos Fóruns. Até começarem as matanças destes, a mando de poderosos, saiam sem escoltas. Às vezes, a escolta era providenciada por milicianos armados. O medo se proliferou e a esperança virou a própria bandidagem, quando os grupos de milicianos tomaram conta da segurança. Em pequenas cidades do Nordeste e do sul do país reapareceu o cangaço. Os bandos formados estavam a serviço de quem pagasse mais. Na cidade de Peritoró no Maranhão um grupo de milicianos trocou milhares de tiros com outro bando de cangaceiros que assaltava a estação rodoviária local. A chacina foi recíproca. Aqueles que fugiram do embate formaram novos grupos violentos na região. Cada vez que decepada, duas novas cabeças da hidra renasciam. Diante da grave crise de segurança que se seguiu no pais, o presidente declarou "lei marcial ". Toda e qualquer reunião pública estava proibida. Mesmo jogos de futebol, excursões e festas populares. Somente permaneceram as reuniões religiosas. Mais de cinco pessoas reunidas em público, se não fossem de mesma família deveriam ser dispersadas, sob pena de prisão. Agora o "toque de recolher " vigia toda noite após as vinte horas. Os bares e comércios em geral deveriam fechar as dezenove horas. No campo político, não era mais só uma defenestração do esquerdismo ou do comunismo. Agora retomaram os ideais absolutistas e antiliberais. Houve uma regressão completa no Brasil para a ideologia anterior da revolução francesa. Acabou a liberdade, a igualdade e a fraternidade no país, em todas as suas versões modernas. Pela primeira vez na história mundial os ideias-força de 1789 foram oficialmente descartados. As forças armadas foram chamadas para garantir a lei marcial em todas as cidades. Foi então que começaram, brutalmente, as prisões políticas e a tortura, como já vistas na ditadura militar. Sem futebol, todos os estádios transformaram-se em presídios. Mas isso será outra história.

No ponto que chegou, Próspero agora se importava com continuidade da democracia ou com respeito aos direitos civis e às liberdades políticas.

São Tomás de Aquino dizia que as lágrimas de arrependimento lavavam as manchas da culpa.