O POLICIAL

-Amor... que horas vai voltar hoje?

-Por quê ?

- Esqueceu que é hoje o dia do aniversário daquele menino do orfanato que ficou no ano passado durante o Natal, em nossa casa?

- Ah! É mesmo, desculpe, mas voltarei a tempo para irmos lá, se não ocorrer nada fora da rotina.

-Tá bom, tchau!

Olhou-se novamente no espelho que ficava acima da pia, arrumou a gola da farda, colocou o quepe e saiu. A rotina de quase todos os dias, onde convivia com a violência de uma cidade já quase sem lei.

Muitos culpavam a polícia por tudo de ruim que acontecia na cidade mas ele sabia, mesmo que não pudesse falar, pois sua função não permitia dizer quem eram os verdadeiros culpados pelo que estava acontecendo no Brasil.

Quando chegou à rua, esperou apenas cinco minutos na calçada, quando a viatura com seus colegas de trabalho, chegou e eles partiram para mais um dia da rotina de medo e perigo.

- Qual é nossa missão hoje?

- A quase de sempre, vamos, juntamente com outras unidades, fazer cumprir algumas ordens de prisão contra alguns maus elementos e traficantes que estão aterrorizando a comunidade local.

Durante todo o trajeto dos longos dez minutos, praticamente fechados em silêncio, apenas uma ou outra piada sobre o futebol e nada mais. Estavam apreensivos, pois o local aonde iam era muito perigoso e quase sempre havia confronto armado. Mas aquela era uma obrigação da qual não se podiam furtar.

Quando chegaram ao local previamente designado, mais duas viaturas já se encontravam lá com colegas fortemente armados; esperava os últimos chegarem para iniciar uma rotina de trabalho nada interessante. Após alguns minutos, chegou um veículo e dentro deste os oficiais de justiça.

Aquele trabalho era praticamente uma aventura no sentido exato da palavra, porque muitas vezes sempre algum não retornava ao convívio da família e passava assim a fazer parte de uma estatística cruel e dolorosa para a família dos futuros órfãos.

O comandante da operação, depois de observar atentamente o mapa da região e repassar por mais de uma vez as ordens, reuniu todos e, depois de uma rápida oração, disse:

- Vamos e que Deus nos ajude.

Em grupos de três foram se esgueirando pelas ruas sinuosas, atentos a todos os movimentos que pudessem chamar a atenção deles. Um descuido poderia significar a morte. Mesmo com coletes, sempre estavam expostas partes do corpo que poderiam ser alvejados por algum atirador colocado em ponto estratégico. Por essa razão andavam sempre em zigue-zague, procurando nunca ficar parado onde pudessem ser alvejados.

Parecia, no entanto, que aquele dia seria de relativa calma, uma vez que em momento algum se ouviu o pipocar de tiros de qualquer dos lados.

Quando chegaram ao endereço onde se supunha estarem os meliantes, depois de cercar a casa e através de um megafone, o comandante gritou para os possíveis ocupantes do barraco:

- Atenção a todos que estiverem dentro de casa, saiam bem devagar, com as mãos sobre a cabeça. Vocês estão cercados!

Depois de alguns segundos, uma porta foi-se abrindo lentamente, enquanto dois jovens de cor negra fora- se esgueirando por entre a porta ao mesmo tempo; um deles tinha no rosto um sorriso sarcástico.

- Está sorrindo de quê? Gritou o comandante.

- Nada não, chefia, só tou feliz.

- Mário!

-Sim, comandante.

-Algeme-os juntos, será mais seguro.

Mário, policial treinado no seu longo tempo de serviço, mais de 20 anos, aproximou-se dos prisioneiros e quando ia algemá-los, um deles sussurrou baixinho apenas para ele.

-E aí, otário, eu vou cumê sua mãe ainda hoje.

Mário, sem conseguir pensar, pegou o revólver que havia no coldre e desfechou a coronha na cara do bandido que, mesmo assim, sorriu de modo maldoso.

Quando recebeu a coronhada no rosto, jogou-se ao chão e fingindo estar passando mal, contorcia-se de dor.

Quando o fato ocorreu, o comandante, sem mais delongas, interrompeu o policial e perguntou:

- Mário, ficou louco, quer ser linchado pelos direitos humanos?

- Desculpe, senhor, mas não deu pra ficar parado diante disso tudo.

Enquanto os acusados eram colocados no camburão, diversas pessoas estavam na rua assistindo à operação que, naquele momento tirava de circulação mais dois perigosos elementos.

Ao fim do dia, depois de comentários diversos entre colegas, Mário foi embora, tinha que ir ao orfanato visitar seu “quase filho”. Tudo estava apenas dependendo do juiz e em poucos dias a decisão deveria vir e com certeza seria favorável a ele.

Desceu da viatura e se dirigiu à residência onde a esposa o aguardava para irem ao aniversário. Depois de reconfortante banho, em poucos minutos, saía dirigindo o fusca que conseguira adquirir com muito custo. Era bem conservado e ele zelava daquele veículo como se fosse o filho que não tinha ainda.

Quando retornou, já era quase hora do jornal da noite, quando sempre via as notícias de que ele também quase sempre participava da rotina de uma cidade sem leis.

Sentado no velho sofá, ligou a televisão no momento que um repórter dava a seguinte manchete:

-Policial despreparado e de índole violenta agride covardemente adolescente na porta de casa.

Quem será esse colega? Pensou consigo mesmo.

Logo depois veio a notícia acompanhada de um filme e o repórter ia descrevendo uma cena hipotética e nela ele era o personagem principal.

Dizia o repórter:

- Hoje, bem cedo, um batalhão da polícia militar, em mais uma de suas desastradas operações, prende e agride jovens trabalhadores na porta da casa.

Enquanto a noticia ia sendo veiculada, a cena de agressão foi sendo repassada várias vezes.

Mário, ao ver a notícia e do modo que estava sendo dada, sentiu um calafrio na barriga e lembrou-se da figura materna e do que ouvira do marginal.

Sua mulher, na cozinha, preparava o jantar; não podia imaginar que, naquele momento, seu marido estava sendo colocado perante a opinião pública como um marginal e o marginal como uma vítima.

Levantou-se, foi até o telefone e ligou para a delegacia onde era lotado, mas ficou sabendo que o comandante havia saído para tratar de assunto da corporação. Ele já estava acostumando com aquilo, então se resignou e, depois do jantar, foi dormir.

No dia seguinte, quando a viatura chegou os ânimos estavam exaltados e um dos colegas disse:

- Meu amigo, estão querendo achar um Cristo!

- Como?

- Você está sendo acusado de violência contra cidadãos e a turma dos direitos humanos está de pau em cima.

- O quê por causa daquilo? Aquele canalha xingou minha mãe!

- Nós sabemos, mas eles nunca acreditam na gente.

Ao chegarem à delegacia, em frente a esta, carros de reportagem de emissoras de TV estavam lá postados, esperando aquele que seria o assunto e o peixe que seria fritado no dia.

Sebastião, o sargento que estava na viatura, quando viu aquele amontoado, de pessoas e repórteres, disse ao colega:

- Entre rápido e não fale nada.

Mesmo com todo o tumulto, repórteres se lançavam sobre eles com perguntas das mais variadas, Mário conseguiu entrar na delegacia, prometendo que depois falaria com eles.

Depois de várias explicações que convenceu apenas o comandante da tropa, o policial retirou-se. Ficaria afastado das operações durante o processo de investigação que seria promovido pela Secretaria Nacional de Direitos Humanos.

Durante todo o processo e por mais de uma semana, as cenas filmadas sob encomenda eram exibidas e todas as vezes outras vozes se uniam ao coro daqueles que defendiam um maior preparo para os policiais.

Durante o processo, nenhuma das alegações feitas pelo acusado foi levada em conta. Como era um bom policial, ele teria que se desculpar com o prisioneiro e ainda ficaria suspenso por um bom período.

Mesmo a contragosto, dirigiu-se à delegacia onde deveria estar o bandido. Lá, ficou sabendo que ele fora solto dois dias depois da prisão. O representante dos direitos humanos conseguiu o advogado para o prisioneiro.

Durante a noite, sentou-se mais uma vez frente à televisão, sab endo que iria, ouvir notícias sobre o mau policial que era. Naquele dia, no entanto, uma equipe de reportagem com um furo de reportagem entrevistava o “ trabalhador agredido”

- Sabe como é, nós é pobre, negro, por isso a polícia vem aqui e barbariza a gente. Quando a gente tenta argumentar alguma coisa, eles batem. E complementou dizendo: Ainda bem que algum cidadão gravou tudo, senão eu seria presunto nesta hora. Os policiais não respeitam a gente. O repórter fechou a reportagem com a seguinte fala:

- Como puderam ver, o cidadão Adão Vieira da Silva, que foi brutalmente espancado pela polícia, disse não guardar rancor e que já perdoou seu agressor, que, por ser policial, julga-se no direito de agredir sem reprimenda.

Mário enxugou as lágrimas que correram no rosto. Agora sabia que a chance de adotar o filho estava indo a zero, sua vida acabava de ser destruída por um marginal que tinha mais credibilidade que ele. Enquanto pensava no que fazer na próxima semana, já que estava suspenso, o telefone tocou.

- Alô, quem fala?

- Oi otário, lembra de mim, você tá frito, panaca.

Desligou e foi tentar dormir e mesmo com todo o carinho da esposa não o conseguiu.

Dois dias depois, quando dirigia o fusca rumo ao mercado com a esposa, uma moto com dois passageiros emparelhou-se com ele e o passageiro metralhou o carro e seus ocupantes, ao mesmo tempo em que jogava dentro do carro um pequeno pacote.

No fim do dia, durante a reportagem da noite, o repórter dizia:

-Segundo informações confidenciais que chegaram, Mário, o policial que agrediu os trabalhadores na porta da casa, foi metralhado quando saía para fazer entrega de drogas a seus consumidores.

E completou a reportagem:

- A esposa dele ainda continua na “UTI”, mas, segundo os médicos, tem pouca chance de escapar. E com esse acerto de contas, entre quadrilhas, morre mais um traficante do Rio...

21-11-07

Vanderleis Maia
Enviado por Vanderleis Maia em 30/11/2007
Reeditado em 07/08/2008
Código do texto: T759066