Dollmaker – bonecas e delírios

Lá estão aqueles olhos, montes deles, abertos, sempre abertos e inexpressíveis olhando-me sem ver enquanto eu mesmo tento não fitá-los, dezenas de olhinhos vítreos de todas as formas e cores, refletindo-se uns aos outros nas íris estéreis numa cega imagem caleidoscópica, multiplicando-se infinitamente na penumbra... Que sonhos enxergarão os diminutos olhos de cristal?

Logo à frente estão os corpos, leves formas humanóides moldadas em resina, cobertos com roupas de seda e laços de fita, cuidadosamente arranjados em caixas bonitas. Ansiados, cobiçados corpinhos envoltos em papel florido, postos em vitrines iluminadas e coloridas numa tentativa de encobrir o subliminar toque grotesco da perfeição com que as facezinhas, delicadamente esculpidas e moldadas, se tornam tão realistas que quase posso ve-las sorrir, ao mesmo tempo tão deslocadas e mortas, invariavelmente idênticas, a cópia de si mesmas totalmente desprovidas do eu, despersonalizadas, presas ao seu próprio estereótipo. Tudo é tão pequeno e delicado quanto é disforme. Pernas e braços soltos, mãos fechadas, abertas com cinco roliços dedos sem unhas, o tronco, desnudo e assexuado, displicentemente deixado sobre a mesa, incompleto, repleto de pretextos e fantasias.

As bocas mudas, vermelhas e miúdas boquinhas caladas entreabertas num eterno suspiro que ecoa na sala escura onde fecho meus olhos esperando que os mecânicos olhos se abram, que os finos lábios pintados se movam sob o toque suave dessas minhas mãos também tão frias e machucadas pelas fôrmas quentes e lâminas afiadas com que desgasto as rebarbas e corrijo as imperfeições.

Vejo-as moverem-se lentamente, tomadas por um fugaz sopro de vida erguem-se graciosas e lânguidas, os pés cambaleantes pisando levemente sobre a bancada áspera, levantam-se umas às outras, tocam-se e admiram-se, ajeitam os laços e babados, riem inconscientes do meu olhar febril. Embaladas por alguma canção que não ouço, põe-se a dançar e rodopiar gargalhando quase escarnecidamente, a cada giro arrancam-se as perucas, rasgam as saias rodadas e os casaquinhos de veludo e então os braços, jogam os olhos umas na outras como se atirassem pedras, puxam-se as pernas e cabeças até jazerem desmontadas sobre a mesa. Destroem-se minhas crianças, já nascidas destruídas e incompletas; destrói-se meu sonho, meu delírio perfeito zelosamente cinzelado, desfaz-se a magia, o doce encanto infantil e esquizofrênico que alimento dia após dia.

Abro meus olhos cansados, resta-me apenas a solidão e o silêncio da sala escura... E os pequenos olhos, que me olham sem ver.

Michelle Angel
Enviado por Michelle Angel em 07/05/2009
Código do texto: T1581540
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