Diálogo entre um homem e seu sapato

(As grandes coisas devem antes usar máscaras assustadora, a fim de se fixarem na mente dos homens) - Nietzsche

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Em algum lugar do globo terrestre...

O fato se deu numa barraca feita com madeira e coberta com pele de animais, cuja mesma era a habitação de um espécime humano, um primata hominídeo aborígene, estava a viver no submundo das classes mais pobres e possuía o mínimo de conforto, o que era possível. Além da rede utilizada para dormir, tinha um fogão a lenha feito com pedras recolhidas aos redores da barraca, havia também um pequeno aparelho de televisão que funcionava com energia solar cujas placas solares fotovoltaicas lhes foram doadas por ONGs; um aparelho que era sua única janela aberta para conhecer o mundo e seus valores culturais.

À noite, quando os sons da batalha pela sobrevivência se deram em trégua pelo cansaço e as mãos calejadas, ele optou por um alternativo ilusório, animações em vídeo, com o intuito de se distrair das lembranças mórbidas e repetitivas que vivia no seu dia a dia; uma rotina de plantar e colher o milho, sua única fonte de alimento, isto porque um órgão administrativo governamental de proteção à cultura exigia a manutenção dos hábitos antigos de sua origem, sem providências de comida e remédio. Disseram para ele plantar sua comida e usar remédios naturais encontrados na vegetação; Embora este disparate para com sua saúde, lhe deram esta criação tecnológica, a Tv...

Entre um comercial e outro, presenciou um raro momento de informação relevante( jornal de última hora), cujo o qual informava o movimento de separação ideológica entre a nação do sul e a nação do norte, separação esta que originou numa luta entre esses povos pelo domínio de territórios antes unificados.

E o aborígene profundamente indignado com as imagens que observava reclama consigo mesmo, no entanto para sua surpresa recebe como retorno uma exclamação de seu sapato:

- Que escárnio! Que repugnante! Que imagem podre! – disse o sapato.

Quê isso!? Meu sapato indignado!

Mas o aborígene condicionado por sua psicose mórbida em duvidar de tudo, duvidar até mesmo da dúvida, retrucou ao sapato asperamente, assim como retrucava os pensamentos, os excessivos ataques emocionais de seus botões. O que era de seu costume, dizia ele, sempre cá a falar com meus botões; só que desta vez quem quis falar foram os seus sapatos... Dando inicio também a uma batalha ideológica entre os dois, o homem e seu sapato, e assim o diálogo se iniciou e o homem respondeu:

- Podre !? O que está acontecendo é uma legítima manifestação do direito que os seres pensantes têm em demonstrar a cultura do solo-pátria sacramentado em remotos tempos por seus ancestrais, lhes dando, não só o direito, como o dever de proteger esses dois elementos primeiros; a terra e a personalidade dos que nela vivem. E por tal se separando, há uma valorização de culturas separadas pelo tempo e pela transformação. Entendeu meu companheiro de tantas caminhadas?

Mas o seu sapato tinha suas próprias opiniões e convicções: - Bem sabe que compreendo tudo o que me fala. Porém, em relação a essa dicotomia ideológica que presenciamos, discordo de sua pessoa. Acredito não existir esse direito que se refere, porque quando há uma vida, ou melhor, quando há muitas vidas sendo sacrificadas por filosofias mitológicas, por ganância de poder, por egoísmo desmedido, expressado por documentos comprobatórios de que domina certa quantidade de metros cúbicos em terra, água, ar e fogo. Se esquecendo do que significa uma ideologia cosmopolita, globalizada é que desses quatro elementos: o fogo, este que se utilizam com corações déspotas em tomar as posses alheias, usando-o como elemento bélico tomando o suor derramado em grandiosos trabalhos forçados, o sangue nobre de tantas criaturas nativas e inocentes. Só porque foi determinado por algum “líderzinho” maluco. Não acredito em separação, mas em união.

E surpreso com a resposta do sapato, o aborígene exigindo tréplica já emenda que há justiça numa autoridade eleita pelo povo e também de um solo sacramentado e divinizado pelo povo. Gente esta, que tem cultura própria, que conhece seus sagrados valores. E valores diferentes devem ser preservados por barreiras.

Mas diz o sapato : - Se eu andasse por esta linha de raciocínio que ridiculamente segue o sua cognição, pensaria como você, de maneira idiota, valorizando até o preconceito nefasto. Acreditaria nojentamente como você que este preconceito tem louvor até no racismo. Não! Somos iguais!

Todavia o homem não estava a aceitar argumentos de um sapato e replicou: - Ora! Ora! Olha só quem se põe no ímpeto de julgar e subestimar os valores humanos! Sendo apenas um mero sapato com a boca aberta.

Óh!!! poderoso humano! Acaso a violência é um valor digno de ser considerado como atitude nobre em pessoas que julgam possuir um raciocínio divino? Que espécie de valor é este? Um ser que se julga nobre genial, inteligentíssimo, mas se esquece de que tenho a boca aberta porque estou contigo há anos e conheço sua vida pregressa. E minha boca aberta é porque fui eu a topar com as pedras em nossos caminhos.

- A violência é sim um valor velho sapato, que varia seu mérito, ora para defender, ora para atacar. Às vezes é uma maldade e às vezes é considerada uma virtude, só dependendo do acaso e da personalidade cultural que um povo tem no momento. Depende se estamos em paz ou em guerra, e para mim a violência não se combate com flores. O mundo é mau meu amigo!

- Perceba senhor primata que a violência é um distúrbio psicológico originado pelo motivo de vocês animais do gênero homo serem predadores desde épocas muito remotas, todavia hoje, com o poder intelectual que dizem possuir, seria de se esperar que sua razão lógica abominasse esse instinto em favor do que chamamos de paz através do amor, da compaixão e do entendimento real do que deve ser valorizado. E vou mais além, deveriam deixar de matar os seres vivos que são possuidores de emoções, passando a se alimentar exclusivamente de vegetais.

- Acredito ser dúbia esta sua posição em relação ao alimento, porque assim não matamos os animais, mas matamos as plantas, que também são seres vivos, e ainda é possível afirmar empiricamente, segundo a ciência, que os vegetais possuem uma capacidade de comunicação entre eles por ondas lentas, mas até o momento desconhecidas, embora já saibamos pelos testes elétricos que as plantas sentem a morte de outros seres vivos.

- Será que realmente sentem? Será que não seriam apenas forças emanadas dos vivos enquanto ainda vivos quando estão a morrer e agindo na estrutura material que os vivos e os que não possuem vida são formados? Contudo, por que não é utilizado como alimento a água, sais minerais e vitaminas sintéticas de laboratórios? Bem sei que possuem esta tecnologia.

- Ora ! Porque matar para se alimentar é uma lei natural, meu estimado sapato!

- Mas isso é vampirismo!

- Não importa como você rotula, matar, não matar, plantar e colher não só está no instinto como também faz parte de nossa cultura. E não podemos deixar o instinto para que se um dia venha escassez de alimentos vegetais, ainda tenhamos chance nas florestas...

- Cultura falha, podre e ultrapassada !

- Olha só meu companheiro de todos os lugares que frequento, acho que você é um sapato bicudo, sem papas na língua, você já caminhou tanto por esse mundo que já está gasto, e com esta boca aberta deve ter os pés feridos, já se partiu os seus calcanhares, você já está velho e precisa seguir seu próprio caminho. Sentirei a sua falta, mas está na hora de nos separarmos, cada um deve seguir seu próprio rumo, sua própria jornada em direção ao desconhecido futuro... Vou comprar um sapato novo!

O homem nativo, que com sua frieza de espírito fez conhecer o bem e o mal, os seus sapatos, com a mesma frieza liquidou o seu relacionamento com o velho companheiro substituindo-o por um par de sandálias, e com crueldade jogou-o no lixo, ficando apenas com seus únicos e verdadeiros amigos desde sempre. Os seus botões. que quando não estavam surtados, eram os únicos que sempre ouviam tudo o que dizia o homem, e calados; como se concordassem com tudo. Embora o sapato tenha por anos agido da mesma forma. Este é um grande defeito nos homens, talvez o pior deles, a ingratidão e achar que tudo é bonito quando tem utilidade apenas ao seu umbigo.

O único amor verdadeiro que o ser humano sente, é o seu amor pela comida!

(Loco Pepe)

Loco Pepe
Enviado por Loco Pepe em 29/07/2016
Reeditado em 30/07/2016
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