M A R I A

É nossa vida um presente

Da natureza divina

Criado só para o bem

Às vezes ao mal se inclina

Se Deus é a direção

O que é bom predomina.

Aquilo que a mente cria

Vai se tornando complexo

Carregando desde cedo

Nos arquivos os anexos

Que serão no amanhã

Do que vivemos um reflexo.

Nas terras do coração

Construímos um império

Que até desconhecemos

O verdadeiro mistério

Das emoções que sentimos

E isso é algo tão sério.

E assim aquela menina

Que atende por Maria

A aluna mais aplicada

Que na escola havia

Comportamento exemplar

Como o dela não se via.

Maria também em casa

Vivia de forma honesta

Obediente aos pais

Era a filha predileta

Mal conhecia as palavras

Mas tinha alma de poeta.

Desde cedo aprendeu

A apreciar poesia

No radinho de sua casa

Escutando cantoria

As trovas dos repentistas

Ela brincava e repetia.

Naquela ocasião

Não tinha idade escolar

A escrita não conhecia

Mas já sabia rimar

Quando viu o primeiro livro

Sozinha quis decifrar.

Começou lendo imagens

E palavras pequeninas

Daí viu um lindo texto

“Meu pé de laranja lima “

Leu inteiro de repente

Foi uma coisa divina.

A partir daquele dia

Começou sua trajetória

Não sabia escrever

Mas tinha boa memória

A literatura de cordel

Veio mudar sua história.

Um dia o seu Zezinho

Comprou um livreto na feira

Disse: - vou levar pra Maria

Que vive lendo besteira

Amanhã ela vai ler

Esse verso a tarde inteira.

Era a história do cangaçeiro

Virgulino, Lampião

E o encontro com Saturnino

Inimigo do sertão

No inferno os dois brigaram

Dos quintos até o portão.

Maria - disse seu pai -

Amanhã é seu castigo

Vai recitar esse cordel

Para Gerson meu amigo

E a casa ficou cheia

Numa tarde de domingo.

A menina desde então

Lia rótulo, lia tudo

Lia bula de remédio

Lia o Ofício num segundo

Depois de alfabetizada

Ela queria ler o mundo.

Para escrever cartas

O povo vizinho chamava

Para São Paulo e Brasília

Do jeitinho que ditava

Maria ficou habilidosa

Fazendo o que gostava.

Na sua comunidade

Só ela lia fluente

Fazia leitura na missa

Deixando o padre contente

E o povo se admirava:

- Maria é tão inteligente!

Terminou a quarta série

Em um grupo escolar

Bem distante da cidade

Não pode continuar

Só depois de muito tempo

Ela voltou a estudar.

No lugar onde morava

Um recanto do Sertão

Havia extrema pobreza

E negra população

O quilombo mais famoso

Que tinha na região.

Maria não desistiu

E começou a sonhar

Ser professora um dia

E pudesse ajudar

A sua comunidade

E aquela vida mudar.

A professora casada

Com um homem indecente

Conhecia que Maria

Era menina inteligente

Que precisava de livros

Mas era muito carente.

Morava em frente à escola

Uma casa de boneca

Os seu filhos estudiosos

Todos formados de beca

Muitos livros ali na sala

Uma enorme biblioteca.

A menina viu os livros

E ficou tão encantada

O homem disse: - pega um.

Maria falou: - obrigada

Ele disse: - mais tarde

Eu lhe entrego na estrada.

Quando terminou a aula

Era grande sua ansiedade

Ele lhe entregou o livro

Maria na ingenuidade

Não sabia que depois

Vinha o preço da maldade.

E ela sofreu abuso

Em plena adolescência

Pois ele lhe dava livros

Em troca de indecência

Maria ganhava leitura

E perdia a inocência.

Com os livros que ganhava

Ela se sentia tão mágica

Maria lia com encanto

Algumas obras fantásticas

Mas dentro ele colocava

Revistinha pornográficas.

Preparando sua presa

Todo de caso pensado

Aquele material

Era lido e assimilado

A mente se poluia

E seu corpo molestado.

Depois passou a agir

Com um golpe mais certeiro

No meio dos livros também

Punha um pouco de dinheiro

E aliciava a menina

Aquele monstro desordeiro.

Maria morria de medo

Isso a ninguém contava

Os livros ela dizia

Que da professora ganhava

Enquanto sua consciência

De culpa se impregnava.

O dinheiro ela gastava

Na bodega do padrinho

O homem a espreitava

Lá no meio do caminho

E tocava a menina

Maculando seu corpinho.

E na primeira vez

Que aquele cidadão mal

Se insinuou para a menina

De dentro do matagal

Deixando que ela visse

O seu órgão genital.

Maria ficou em choque

Totalmente estarrecida

Pesadelos e tremores

Ela se achava perdida

Confusa e curiosa

Com a inocência ferida.

Quando ela ia à escola

E para roça também

Sozinha sem um irmão

Nem proteção de ninguém

No mato ele aguardava

Pra fazer ela refém.

Até que um dia seu pai

Disse Maria vai mais não

Estudar naquela escola

Cuidará de Ciço e João

E por isso sua vida

Tomou outra direção.

Providencialmente mudou

O caminho do roçado

Distante do itinerário

Onde morava o malvado

Deixando o caso de dor

ficar bem lá no passado.

Não mais viu desde então

E o tempo se passou

As lembranças adormeceram

E o medo ela superou

Desenvolvendo seus dons

Dessa forma se curou.

Aquele sujo episódio

Ninguém jamais conheceu

Maria guardou num canto

Depois disso esqueceu

Queria viver as histórias

Dos livros que ela leu.

Maria ficou grandinha

Por todos era bem-quista

Brincava de professora

Era também catequista

E na causa quilombola

Se tornou uma ativista.

Militou pelos direitos

Da sua comunidade

Lutou pela associação

E teve prioridade

De rescrever a história

Dando ao povo dignidade.

Valorizava sua origem

Era jovem e estudando

Tinha senso de justiça

Maria foi se formando

Para voltar ao quilombo

Estava se preparando.

Fora da sua família

Vivendo lá na cidade

Continuou na escola

Superando adversidades

Terminou o ensino médio

Depois entrou na faculdade.

Sempre que ia em casa

Gostava de visitar

Os mais velhos do quilombo

Para deles escutar

Memórias de outros tempos

Começou a registrar.

Escrevia num caderno

Tudo que seu avô dizia

Transformava isso em contos

Ou mesmo em poesia

Resgatar aquela cultura

Era o que ela mais queria.

Empoderada pra vida

Chegou então sua vez

Maria criou um projeto

No ano dois mil e três

O sonho de mudar história

Realidade se fez.

Motivou a amiga Paula

Incentivou sua liderança

Convidadas a trabalhar

Na escola com crianças

Resgatando as tradições

Deram ao quilombo esperança.

Procuraram o poder público

Ganharam da prefeitura

Todo apoio para fazer

No quilombo uma estrutura

Levando educação

E valorização da cultura.

Na escola que estudou

Agora era professora

Recontava a história

E era exímia escritora

Divulgava a cultura

De forma inspiradora.

Maria conquistou o povo

Com sua alma de mel

No anonimato do Sertão

Atuou em seu papel

Reescrevendo a vida

Nos versos de um cordel.

Vivera a juventude

No social envolvida

Dentro de grupo jovens

Ocupando sua vida

E os relacionamentos

Não tinha tempo ainda.

Depois deixou sua terra

O seu humilde torrão

Foi pra um lugar distante

Tomou essa decisão

E começou a viver

Os encantos da paixão.

Cada abraço oferecido

Ou um aperto de mão

Ela sentia fluir

Negativa sensação

Revivendo em seu corpo

Do passado a emoção.

E dessa forma evitava

A figura masculina

Com medo do passado

Se sentindo pequenina

Pondo em dúvida começou

A gostar de uma menina.

Apesar de instruída

A jovem independente

Por carregar alguns princípios

No coração e na mente

Não assumiu e afirmou:

- É pecado, é indecente.

Por medo do preconceito

Reprimiu suas vontades

Se esforçou para casar

Agradando a sociedade

Teve casa, teve filhos

Era mulher de verdade.

Casamento temporário

Faltando felicidade

Os desejos escondidos

Não se curou de verdade

O passado e sua dores

E o perdão da maldade.

Eis aqui grande dilema

Do jovem de cada dia

Uns precisam de oração

Outros de terapia

Esta menina, dos dois

E também de poesia.

Lancei nesta poesia

Um enredo de emoção

Com a minha transição

Ilustrada de agonia

As marcas daquele dia

Sinto no peito agora

Intimidade que aflora

Luto para consertar

Vivendo sem encontrar

A Maria pura de outrora.

LúciaSilva

Oxelucia
Enviado por Oxelucia em 10/12/2021
Reeditado em 13/12/2021
Código do texto: T7404451
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