UTOPIA REALIZÁVEL

Diante do contexto emprestado ao epísódio recente, no qual índios atacaram a golpes de facão um mediador de conflitos de interesses e ideologias, relembrei os antigos seriados americanos de eternos enfrentamentos entre entre índios e soldados. Eram heróis os soldados, que invadiam as reservas indígenas desmatando, construindo seus fortes, impondo sua cultura e a subserviência dos silvícolas. Eram vilões perversos os índios, porque se defendiam com flechas, tacapes e machadinhas, resultando algumas baixas no exército "cara pálida", quando eram massacrados pelas armas-de-fogo daqueles militares.

Também deploro qualquer tipo de violência, venha de onde ou de quem vier, gratuita ou não. Mas deploro igualmente a festa que se faz numa situação como essa, quando um povo que vem sendo dizimado há mais de quinhentos anos atinge um pico emocional, uma situação-limite, e desesperadamente ataca, imitando o que os poderes público e financeiro lhes fazem secularmente, sem suscitar escândalos e manchetes. "Índios atacam a golpes de facões!". Sim, atacaram a golpes de facões um homem que está vivo, ativo, e não apresenta cortes profundos nem perfurações. Um homem de bem, pacífico, mas que pertence à mesma sociedade que os extingue, saqueia, engana e menospreza.

A exploração perversa deste episódio pode ser uma boa desculpa para o sistema emperrar mais e mais os processos para o bem estar e a garantia dos direitos do índio. Ver os índios como violentos, quiçá canibais, fará com que a sociedade apóie o poder público, entenda os fazendeiros e alivie a própria consciência, esteja de que lado estiver essa razão que dificilmente se reconhece nos mais fracos.

Queremos todos uma sociedade na qual um cidadão nunca seja ferido por outro, em nenhuma circunstância. Para que ocorra esse prodígio, teremos que ser uma sociedade inclusiva, da qual façam parte o índio, o cigano, o umbandista, o homossexual, sem nenhuma desvantagem no tocante aos direitos básicos do ser humano. Quando soubermos excluir o racismo e todas as outras formas de preconceito, a exemplo do ideológico e o religioso, seremos todos cidadãos com o direito de ir e vir, estudar, morar, trabalhar, ter lazer, consumir, gozar de boa saúde.

Quem será revoltado contra quem, numa sociedade assim? Quem há de se vingar de quem ou quê, se não tiver algoz ou opróbrio? Quem ambicionará o que é do próximo, se terá tudo de que precisa, e por isto se enquadrará perfeitamente no padrão de cidadania com que todo ser humano sonha?

Jamais haverá um mundo perfeito, mas pode haver um mundo ideal. Um mundo no qual a violência seja incomum; tão incomum, a ponto de nos assustarmos com casos que hoje são corriqueiros, independentes da parcialidade nas campanhas de mídia. Um tempo, inclusive, no qual o mais ínfimo caso de corrupção política gere tanta, mas tanta indignação social, que será impossível a impunidade.

Sem o abuso dos poderes político, econômico e judiciário, que por esse abuso são a raiz de todos os males da humanidade, o sonho que agora expomos é realizável. Mas vale a pena lembrar que o povo precisa reagir; tomar as rédeas da história, fazendo com que todo o poder de fato emane dele. Como fazer isso? Jamais repetindo, por exemplo, o voto ineficaz. Mudando sempre, até acertar. Pondo nos poderes constituídos representantes sem o menor ranço, o mais longínquo fedor dos que já conhecemos de forma negativa. Nada de mais ou menos, pelo menos ou melhorezinhos.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 31/05/2008
Reeditado em 04/06/2008
Código do texto: T1013243
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