MARTELANDO NO QUINTAL

Fazia tempo que o canto de um sapo-martelo não adentrava os meus ouvidos. Não que eu more exatamente numa metrópole, mas talvez porque até mesmo por estas plagas não haja mais um brejo para que essa e outras espécies montem suas orquestras. Quando menino - bem me lembro -, costumava sumir nas noites deste mesmo lugar que não tinha tantas residências, para ser platéia dos cris e coachados que medravam nos recantos agora tomados por pavimentos e belas casas. Belas casas sim, de um bairro ainda sossegado, mas que perdeu a magia noturna dos brejos onde os shows da pequena fauna contavam com o jogo de luzes dos vagalumes e o amparo de um céu reverente, silencioso, estrelado ou não.

O sapo-martelo agora me surpreende com carreira solo, martelando no quintal da mansão vizinha. Uma bela mansão que à noite apaga as luzes e deixa o quintal dormir no aconchego das plantas ornamentais. Entre elas as plantinhas aquáticas que se amontoam no laguinho artificial, auxiliando no bom gosto indiscutível do terreno. É lá que o sapo digere sua solidão, cantando pros vegetais, pelo menos enquanto o dono daquilo tudo não cisma de pavimentar todo o chão, como já fizeram seus vizinhos. Inclusive o proprietário da casa fria e impessoal em que moro hoje, depois de passar por várias cidades das quais voltei para fugir do desassossego e da saudade que me seguia.

Dizem que o dono e morador do quintal que acolhe o sapo é um senhor misterioso. Militar reformado, mantém a mesma expressão que por muitos anos obteve o respeito e a reverência da comunidade pacata que o cerca. Outros tempos, quando a patente militar causava esse impacto. Deixei um dia essa comunidade para buscar chances de crescimento profissional distante da calma que permite ainda a um batráquio se instalar no canto de um quintal sem ter de calar o canto que o denuncia, pelo temor de ser expulso do habitat improvisado. Pode ser que o velho e misterioso militar nunca tenha ouvido o mantra que abençoa sua propriedade, mas pode ser que sim. Esse detalhe o poria também no topo do meu respeito, por uma razão bastante peculiar.

Como tantos fazem diariamente, nesta manhã me detive um pouco, diante da mansão, apreciando. Sei que não há nas redondezas uma só pessoa que não admire a exuberância inerente àquele espaço. Isso rende ao proprietário a inveja quase sempre saudável de quem o conhece, mesmo que não seja pessoalmente, como é meu caso. Minha inveja, entretanto, não tem a ver com o patrimônio formal e notório de meu vizinho. O que admiro é seu privilégio de abrigar o sapo-martelo, sendo merecedor de seu pagamento em forma de um canto raro que a geração presente já desconhece.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 27/08/2008
Reeditado em 27/08/2008
Código do texto: T1148794
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