Os bondes...
          que saudade!


     IVONE, minha santa esposa, telefonou-me para dizer que seu ônibus acabara de ser assaltado. 
    E que os passageiros do "busu" molestado, depois de bruscamente liberados pelo atrevido assaltante, haviam sido levados à delegacia de polícia mais próxima - de onde ela, pelo celular, fazia a ligação -, para registrar a queixa..

     Coitada da minha mulher! Pela segunda vez, em menos de três meses, teve que suportar tamanha humilhação...
     Com indisfarçável indignação, reagi à notícia. Xinguei deus e o mundo. Mesmo sabendo que minha iracúndia, embora fundamentada, não concorreria para sustar ou diminuir a onda de assaltos a coletivos que, agora, como maior freqüência, vem inquietando a capital baiana. 
     Dia desses, resolvi ir de ônibus à Praça da Sé. Antes de chegar na Praça Castro Alves, perdi, num audacioso assalto, o meu relógio de estimação, e uma cédula de 50 reais que mantinha permanentemente na minha carteira, à disposição dos senhores larápios.
     Interpeladas, as autoridades da estimada Soterópolis (arre!) não perdem tempo:-  "Assalto a ônibus, querido? Oh! Acontece em todas as grandes capitais." 

      Mas só quem já foi imobilizado, no interior de um ônibus, por um assaltante frio e calculista, sabe o quanto custa agüentar, caladinho, esse vexame, difícil de ser esquecido.
     Por isso, venho repetindo, e sem acanhamento, que tenho muita saudade dos velhos bondes, o "amável e modesto" transporte coletivo, assim os chama Olavo Bilac, em formidável crônica que escreveu nos idos de 1903.
 
     Ainda os alcancei trafegando, já cansados, nas avenidas e ladeiras de Salvador. Todos os dias, e a qualquer hora, tomava-os, sem apreensões ou sobressaltos, certo de que neles não viajavam assaltantes. Perdoava, inclusive, suas paradas repentinas provocadas pela falta de energia.
     Nos fins de semana, usava-os nos meus passeios turísticos. Curtia, por exemplo, ir do centro da cidade à praia de Amaralina onde, sob as bênçãos de alegres baianas, comia um saboroso acarajé com camarão.
 
     Sua marcha, cadenciada e lenta, permitia-me folhear um bom livro; ler o jornal do dia; ou repassar as anotações colhidas na última aula de Direito Penal ou de Processo Civil. E se quisesse, até tirar uma soneca.
     Nos bondes, não posso negar, eu me sentia absolutamente seguro; mesmo quando tinha que viajar dependurado nos seus estribos, praticando, com incrível disposição e destreza, uma ginástica, à época, compatível com os meus vinte e poucos anos, frequentando a Universidade.
     Nos bondes, fazia ótimas amizades; inclusive com seus garbosos motorneiros, caras legais, até quando badalavam, com vigor, "na sua campa delém-delém!", entre um ponto e outro do seu percurso, às vezes, sinuoso e longo.
     Sobre o bonde - ressaltando-lhe os méritos -, a saudosa escritora Rachel de Queiroz, lá pelos anos 70, escreveu: 
      - "Bonde, o mais civilizado veículo concebido pela técnica, bonde que não esquenta, não queima óleo, não vomita fumaça, não buzina, não sai do caminho, não ultrapassa os outros, não abalroa, não agride, não vira em canal, não despenca de viaduto, não caça pedestre, não fura pneu, não quebra barra de direção, não dá tranco para acomodar a carga humana, não depende de um motorista sofrendo de psicotécnica, mas de motorneiro pachorrento, bonde, ah, bonde não sei o que diga em teu louvor, já que, plagiando Manuel Bandeira, por mais que te louvemos nunca te louvaremos bem!"
     Os bondes...que saudade!
    Mas descobri (?) como andar mais tranqüilo nos ônibus que cortam as ruas, com muitas curvas, muitas rampas, e cheias de história da  Salvador centenária: recitando as orações e as jaculatórias que minha mãe, ao longo dos seus noventa e seis anos de vida, me ensinou...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 10/03/2006
Reeditado em 02/10/2019
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