A crônica de uma
                
cidade pai-d ´égua



               Abro esta crônica, citando Graciliano Ramos. Um dia, o velho Graça, na sua franqueza habitual, disse esta verdade, que considero irretocável: "Só escrevo sobre o que vi."
               Na literatura, a ficção fica por conta dos romancistas, dos contistas e dos poetas.
 
               Aos cronistas, Deus confiou-lhes a sagrada tarefa de escrever sobre o que eles viram ou vêm no seu dia-a-dia.
               Conheci alguns deles, aqui em Salvador, que viviam com  sua Rolleiflex a tiracolo sacando as fotos do fato que seria o tema de sua próxima crônica.
               A crônica, portanto, traz a marca da contemporaneidade. Por isso ela se torna uma leitura atraente e agradável.
         Vale notar, que quase todos os grandes escritores brasileiros tiveram seu instante de cronistas.
        Através de suas crônicas, as gerações que os sucederam puderam ficar sabendo do que de extraordinário e interessante deu-se em épocas passadas.
        Posso até exemplificar, lembrando o padre Lopes Gama , com suas "crônicas de costumes", publicadas no O Carapuceiro , lá pelos anos trinta, do século 19.
        E Machado de Assis? Quanta coisa curiosa sobre o seu Rio de Janeiro o Bruxo deixou registrado, e de forma magnífica, nas suas crônicas, às vezes irônicas, às vezes mordazes. Mas sempre elegantes.

               Assim também foi com Humberto de Campos, José de Alencar, Henrique Pongetti, Nelson Rodrigues, Carlos Drummond, Rachel de Queiroz, Otto Lara Rezende, Antônio Maria, e o genial Rubem Braga, o "sabiá da crônica".
          Hoje, estão aí cronistas eméritos como Affonso Romano de Sant´Ana, Lia Luft, Roberto Pompeu de Toledo, Rubem Alves, Carlos Heitor Cony, João Ubaldo Ribeiro e tantos outros espalhados por este Brasil velho afora.
          Me lembro, que nos meus dias de Fortaleza,  existiu um cronista que a gente deixava tudo de lado, para ler suas páginas. 
   Ele se chamava Caio Cid, cuja obra, parece-me  esquecida por seus conterrâneos.
        Ainda consegui, num sebo de Fortaleza, dois exemplares de seus livros de crônicas. Um até bem visitada pelo cupim, mas guardando nas suas entranhas, relembranças de um feliz tempo cearense, que se foi.
        O cronista, redigo, é o responsável pela constatação e divulgação do que de bom e de ruim, de alegre e triste ocorre em sua cidade, no seu país, no mundo. 
              Eles são líricos, de polícia, de política, de esportes, e  cronistas sociais, com suas colunas, geralmente muito lidas, falando de A e de B, sempre, ou quase sempre, naquele clima de incontrolável fofoca... 
             Trabalhei muitos anos em jornais e rádios.
 Comecei no Diário do Povo, de Fortaleza (um belo foca!) comandado por um dos maiores jornalistas que conheci na vida: Jáder de Carvalho
               Em Salvador, aonde cheguei em 1957, fui copidesque e redator em alguns jornais e rádios.  Até que, por força da profissão de advogado, tive que abandonar as redações. 
          Mas isso é o que menos interessa.
          Interessa muito mais saber, que, na minha terra, um radialista e homem  de televisão, competente, experiente e acreditado, preocupou-se em escrever a crônica de Fortaleza, que aqui chamei de uma cidade pai-d´égua. 
         Falo do radialista Narcélio Limaverde.
         Em dois formidáveis livros, ele contou a história e as estórias da capital alencarina, nos tempos idos.
          Muito bem. Num gesto de extrema lhaneza, o Narcélio enviou-me um exemplar do seu mais novo livro, intitulado Fortaleza antiga
         Testemunha ocular de grande parte do que aconteceu em Fortaleza, recordado por Narcélio, com a precisão e a doçura de um cronista lírico, deitado na minha redinha cearense, revivi cada episódio, cada rua, cada tudo ... com indisfarçável emoção.
         Já havia lido, do Narcélio, Fortaleza, História e Estórias - Memórias de uma Cidade.
         
Adquirira no Espaço Cultural Dragão do Mar, quando, em 2000, estive no Ceará, a caminho do santuário de Canindé. 
         Sentira muita saudade de minha capital, aonde perambulei, do Colégio da Imaculada a Jacarecanga, por entre a Rua 25 de março, Praça do Ferreira, Avenida do Imperador, Tristão Gonçalves e a Rua São Paulo, guardando desta última a mais terna lembrança de um sonho irrealizado, mas que valeu enquanto durou...
         E, agora, com Fortaleza antiga diante de meus olhos, a saudade foi aumentando na proporção em que o Narcélio ilustrava seus textos com fotos de locais queridos por este escriba. 
         Como, por exemplo, a Praça da Lagoinha, cenário de alguns incríveis momentos de um ex-seminarista romântico e sonhador...
         "Fortaleza História e Estórias" - Memórias de uma cidade e Fortaleza antiga são dois livros que os cearenses - de qualquer idade - estão na obrigação de ler; de saboreá-los, página por página.
          Por isso, aos cabeças-chatas que moram em Salvador e que privam da minha amizade, não deixei de lhes indicar os dois livros do Narcélio Limaverde. 
          Não sei agora, mas a capital baiana já hospedou tantos cearenses que, em determinada época, os pais-d´éguas formavam, depois dos sergipanos, a maior colônia "estrangeira" em território baiano.
          Agora, um pouco de história. Tivemos, aqui, em Salvador,  um clube (1958-59)  chamado Associação dos Filhos e Amigos do Ceará - AFAC, que a galera, pra nos gozar, chamava-o de AFACA! Sem dúvida uma alusão à tradição "belicosa" (?) dos filhos de Iracema.
           Nesse tempo, governava a Bahia o cearense,  Juracy Montenegro Magalhães, general do Exército Brasileiro, que aqui se radicara, desde 1930.
           O general se declarava escravo, na política e pelo coração, do que ele chamava de "minha boa gente baiana".
          Quando, raramente, comparecia às nossas festinhas na AFAC, o presidente do clube, um cearense muito lúdico, mandava que a orquestra o recebesse, tocando: "Eu só queria que você fosse um dia ver as praias bonitas do meu Ceará. Tinha a certeza  que..."  O general ficava ruborizado! E nós, sem ligar pro convidado ilustre, soltávamos o pé, como se estivéssemos em Fortaleza, participando dos bailes nos clubes Náutico e  Maguary.
          Repito: os livros do Narcélio me trazem uma  saudade danada do meu Ceará... 

          
         
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 18/03/2009
Reeditado em 28/10/2020
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