PRIMAVERA…

PRIMAVERA…

Primavera…

Num dia de Abril, num final de um dia de Abril, de um dia como tantos outros, com sol a perder fulgor por se encaminhar para o ocaso, da esplanada da Brasileira eu via, eu vi e o que vi? Vi gente que passava, que passava, que passava em passo apertado, em passo largo ou em passo molengão, mas passava…gente fina, presumida, elegantemente vestida outros nem tanto, mas passava. Muitos passavam sem parar e se paravam, paravam para observar a vetustade da fachada do antigo e remodelado café. Uns, os mais interessados em levar consigo memória fotográfica ou vídeo, buscavam os melhores enquadramentos para essa recolha. O edifício, o bonito edifício de fachada azulejada e bonitas varandas, guarda no rés-do-chão e primeiro andar do mesmo, a magia de um café, de um café soberbo de história e estórias, quiçá de mais estórias que história. O interior, bem, o interior prima pela beleza do mobiliário, o mesmo, mas renovado, daquele que se conhece há mais de cem anos…

A esplanada estende-se pelo início da Rua S. Marcos e Largo Barão de S. Martinho, com vistas para a Praça da República. O posicionamento privilegiado, no gaveto das ditas ruas e na embocadura da principal rua pedonal da cidade, a Rua do Souto, não deixa ninguém alheio à graciosidade do espaço. Por ali e nas vistas da esplanada há tendinhas de artesanato africano, de negras que a executar tranças, de crianças brincando no pequeno jardim com os pais de olho em cima, lojistas a assomar às portas no tempos mortos, a florista a cuidar das plantas e venda, o engraxador a passar e a olhar os sapatos dos hipotéticos clientes, um ou outro pedinte que se abeira das mesas e estende a mão à sensibilização de possível esmola, o jovem de aspecto cuidado mas com perturbação psíquica a dissertar sobre nada e estranhamente ou não, passa uma patrulha de polícias, de dois polícias de mãos atrás das costas e andar sereno a ponto de até apetecer perguntar se a cidade não tem polícias ou se não os justifica. Na esplanada, os clientes dividem-se pelas inúmeras mesas, nalgumas só um, noutras vários ou muitos, em cavaqueiras animadas por gargalhadas, por vezes estridentes. Os empregados, homens já com mais de cinco décadas ou as empregadas, simpáticas e jovens, não têm mãos a medir.

Pst, um fino, por favor, pst, um café curto, pst, um carioca, pst, uma cola, pst, uma meia-de-leite e uma tosta mista, pst, uma Carlsberg, pst, uma Super Bock, pst, pst, pst, pst abaixo, pst acima, tantos pst que, suponho, os empregados já só sonham com PSTs.

De todos os clientes, há alguns que nos prendem mais a atenção, mas há um que eu particularmente me detive de modo discreto, a apreciar: um homem, quiçá, próximo dos cinquenta e cinco anos, pele morena, de um moreno causticado pela vida, pois o dito não me parecia trabalhar resguardado do sol. Esse homem leu o jornal desportivo Record mais que muitas vezes e curiosamente, apenas lia a sua página direita. Perguntava-me, será que ele tem algo contra a página esquerda? Será que aquele jornal hoje saía com páginas “direitas” do seu clube do coração e “esquerdas”, dos seus adversários? Bom, por certo eu estaria a fazer juízo errado ou seria que o dito homem nem saberia ler e apenas lhe interessava ver só as fotos? Ao fim de algum tempo verifiquei que ele não lia coisa nenhuma tal a rapidez com que passava de páginas ou em alternativa, só lia as “gordas” como eu tantas vezes faço quando não me sobra tempo para esmiuçar as notícias. Transcorridas todas as páginas, regressava ao início do jornal e invariavelmente seguia a mesma estratégia de leitura, isto é, sempre a leitura das páginas da direita e fez isso tantas vezes que por certo algo me estava a passar que eu ainda não tinha percebido. Redobrei a minha atenção sobre tão estranho leitor, a que no meu íntimo passei a designar de “o homem que só lia a página direita” e pensei: se houvesse muitos leitores como este, os jornais poderiam poupar muitas páginas e gastos associados. Senão vejamos: ficaria a ganhar a floresta, a reciclagem e outras economias subjacentes, mas se os conselhos directivos dos jornais teimassem em enviar a página esquerda, a mesma poderia vir em branco e apenas serviria para ajudar a tê-lo aberto ou para nelas escrevermos recordatórias, fazer a listagem de compras no supermercado ou quiçá, fazer poemas ou simplesmente dar liberdade à criatividade. Como acho que os directores dos jornais são pessoas mais inteligentes do que eu, eles nunca irão abdicar de enviar o jornal sem a página esquerda e porquê? Eles sabem que um jornal aberto, bem aberto, pode passar descrição a muito espião, pode inclusive dar estatuto social e de pessoa preocupada com a informação e também pode esconder o leitor de olhares menos interessados ou o seu contrário, como foi o meu caso e deste modo ter exposto à minha observação, o inusitado leitor. Não há dúvida que nunca me tinha deparado com um leitor com estas características: leitor de páginas direitas. Pergunto-me, será que há também leitores só de páginas esquerdas? Talvez…

Bom, meu tempo de observação havia chegado ao fim. Não podia continuar a “investigar” a minha intriga por ter horário a cumprir. Chamei a empregada, paguei e decidi levantar-me para seguir o meu caminho. Mas, antes de partir ainda me perguntei: será que devo ir embora sem contudo fazer um último esforço para perceber o que levava aquele homem a ler apenas as páginas direitas do jornal? A resposta que dei a mim mesmo é de que não deveria abdicar desse último esforço investigatório por talvez não ter outra oportunidade para o fazer. Decidi então passar discretamente por trás do “leitor das páginas direitas” e reparei que em frente estava uma senhora indiscretamente sentada com as pernas abertas aponto de se verem as cuequinhas. Percebo agora definitivamente porque os jornais não irão nunca abdicar das duas páginas. O machismo, ainda é o que era…