A Tristeza de Rebecca

Clevane Pessoa de Araújo Lopes

A Tristeza de Rebecca

Estou no consultório de psicologia clínica, com uma garota de fartos cabelos negros, amarrados em rabo-de-cavalo, espinhas no rosto,unhas ovais muito bonitas...Ela já enfrentou galhardamente uma cirurgia cardíaca,a morte do pai,a troca de escola.Está incluída nesse novo universo...

Lembro-me do dia em que Rebecca chega, senta-se, passa um tempinho quietinha e diz-me bem alto:

-"Estou triste, Clevane".

Exulto!Não, não pensem que sou alguma pessoa sádica, a alegra-me com a tristeza alheia.É que Rebecca tinha muita dificuldade em externar seus sentimentos.Eu os espelhava, falava por ela e quando fazia uma pergunta relativa às suas raivas, mágoas, frustrações, dava de ombros, ou, no máximo, dizia "Não sei"...

Acompanho-a há alguns anos.É um prazer vê-la agora na sala de espera de meu consultório, abraçada a uma revista, lendo-a atentamente.Lembro-me de quando começou a levar para o atendimento,as revistas escolhidas."Clevane, por que" Para que? Para onde?"Eu ia explicando e ela ouvindo, mas sem tecer comentários.De repente, começou a rir com beijos e abraços de propagandas quando entrou na puberdade.Falávamos de moda.Eu a fazia escolher entre um sapato e outro, certa cor de blusa, batom ou esmalte.Passou a usar as unhas compridas, parou de roê-las.Dei-lhe vidrinhos de esmalte, umas pulseirinhas baratas : argolas fininhas que andavam na moda, as quais não tira do pulso, mesmo tendo em casa suas jóias.Quando as presentei, disse que não as queria, sem abrir o pacote, mas quando o fez, apaixonou-se.Usa-as para tudo.

Treinei- a saber dizer não.Com os livrinhos da personagem Katty.Gargalhava dizendo "Não".Depois a mãe , uma pessoa maravilhosa, me instigava a desmanchar os muito nãos.Adolesce, expliquei-lhe.Criança com Síndrome de Down leva o próprio tempo para adolescer.Mas os sintomas e sinais da adolescência brotam como botões de primavera:inevitavelmente.Apaixona-se, claro.Percebe suas limitações e passa a se negar.Seu nome agora é Sandy.A irmã do Júnior, com quem quer se casar.Para vestir-se de noiva, um sonho.Para ter filhinhos.

Num jogo de combinação de letras, que adora, procura com paciência, embora tenha de contar com a sorte também, as que formarão o nome da dupla:Sandy e Júnior...A mãe conta que está assinando os trabalhos escolares como "Sandy".Faz isso também na terapia.Sei o recado:"não quero ser assim, quero sandyzar-me".Como toda adolescente, tem seu ídolo, seu amor platônico.

É difícil mesmo, consolo a mãe, que se assusta com os" não" e "sim".Rebecca se impões:quer vestido vermelho nos quinze anos, quando a mãe sonhara branco.Esta,ponderada, satisfaz a ambas:Rebecca veste um de cada cor, durante a festa.Um depois do outro.Festa a que não pude comparecer mas que ela descreve-me toda,enquanto mostra as fotografias.

E hoje, essa declaração.Está infeliz e sabe disso.Um dos cãezinhos de uma de suas cadelas ,a Rita,morreu incidentalmente : o outro cão da casa, uma São Bernardo chamada Hanna,carinhosa, o foi apanhar quando ele rolou degraus.Apertou-o demais.Agora ela me conta tudo isso e seus olhinhos rasgados lindos,têm uma sombra de pesar.

Logo depois, sugiro, ao jogo:"Você tem essas letras, poderá formar casaco"

-Não, Clevane, diz-me ela:quero formar casamento".

E cai na gargalhada, observando meu contentamento.

Tem vontade própria, faz escolhas, teima.Coitada da mãe simpática dessa adolescida!Está a reformular todos os decretos, pois nem sempre será atendida-e como qualquer mãe desses borbolescentes,suspira!Onde estará a antiga menininha?Enquanto isso, ela diz a mim que não quer hoje, colorir.Pelo menos por enquanto.:quer resolver probleminhas de aritmética.Imprevisível, contestadora,encantadora.A minha mocinha querida, que ao terminar as continhas, sorri e assina "Rebecca".Sandy agora é apenas a cantora predileta.Ela é mais ela...