BONÉ ANALFABETO (“Do rio que tudo arrasta se diz que é violento/ Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.” )

Claudeci Ferreira de Andrade

Era meu primeiro dia de aula naquela Unidade Escolar. Cheguei cedo para conhecer meus colegas de trabalho, e encontrei-os em reunião com a diretora na sala dos professores. Tratavam das normas para o bom andamento dos trabalhos daquele ano; uma delas falava da proibição do uso do Boné nas dependências da escola. Perguntei o porquê, e me falaram tudo que eu já tinha ouvido nas outras escolas em que trabalhara. O que eles não sabiam ainda era a história do Luzito do sexto ano, da última escola em que eu tivera atuado. Ele foi mandado de volta para casa na primeira semana de aula, com a expressa recomendação que só entraria na escola, no dia seguinte, acompanhado do pai. Foi o melhor argumento que eu já ouvi contra a proibição do uso do boné na escola. Aconteceu assim na sala da diretora:

— Senhor Ignácio, chamamo-no para fazer-lhe ciente do mau comportamento do seu filho na escola; ele só poderá continuar nessa escola se obedecer o regimento. – Disse a diretora arrogantemente.

— Meu filho, o que você fez dessa vez? – Perguntou o pai virando-se para o filho encolhido em um canto da sala.

— Sabe, pai, é aquele boné do meu time, que ganhei de presente do Davi, no “amigo secreto”, no final do ano passado. Eu queria mostrar para ele, que também estuda aqui, a estima que tenho pelo presente que ele me deu, mas fique tranquilo, papai, não vou usá-lo mais.

— É assim mesmo, meu filho, não faça como eu que nunca mais voltei à escola porque me recusei a tirar o boné, ou melhor, não me convenceram a tirá-lo. Naquela ocasião, levaram-me a um conselho de professores e disseram-me que no boné se escondia drogas. Mas, se eu usasse e/ou traficasse, esconderia em um outro lugar qualquer, menos no boné que os colegas arrancariam de surpresa facilmente. Disseram-me que ele disfarçava meu cochilo na hora da aula. Isso era absurdo, pois estava ali para estudar, e quem não percebe alguém, cochilando usando ou não viseira? Disseram-me ainda que não fazia parte do uniforme, mas como rejeitar uma peça de vestuário se a escola não tinha um uniforme obrigatório? Já os professores de Ciências diziam-me que o boné abafava a cabeça e o suar amolecia os cabelos e os fazia cair, mas as nova descobertas dizem que a calvice é hereditária não tendo nada a ver com uso de boné. Por último, disseram-me que o emblema estampado no boné excitava provocações impetuosas, estimulando à violência. Eu não entendia. Hoje entendo que a maior violência sofrida por mim foi cometida pela própria escola, e não foi por causa daquele boné somente! Mas, por incopetência dos que fazem o Regimento Interno. Estudei só até a quinta série! Depois que acabou minha adolescência, deixei de usar aquele boné que tampava as espinhas horrorosas de minha testa, porém não pude mais estudar, tive que trabalhar para sustentar vocês. Por isso, meu filho, não me arranje mais problema. Continue seus estudos e não traga nunca mais seu boné para escola; você tem o rosto lindo, sua testa se parece com a de sua mãe!

Lamentei muito não ter podido contar minha experiência naquela reunião, temi parecer “mal na fita”, ou melhor, não queria comprometer meu futuro, pois todos os demais ali estavam unânimes com o Regimento Interno da Unidade Escolar. Apenas concordei também. Que me desculpem os intrépidos!

Encaminhamento de percepção

1-Comente a velha proibição ao uso de boné nas dependências da escola. Que influência tem essa medida no processo ensino/aprendizagem?

2-Como professor, você não se oporia às normas infundadas de sua escola em nome de sua reputação?

3-Que contribuição os pais prestariam à escola se adotassem o comportamento do pai Ignácio?

4-Até que ponto a escola tem culpa no alto índice de evasão escolar?

5-Segundo o senhor Ignácio, a proibição arbitrária do uso do boné

na escola foi uma violência praticada a ele. Que outros tipos de violência a escola está praticando aos seus alunos sem perceber?

6-Você já vivenciou algum fato em que o uso do boné atrapalhou o bom andamento escolar?

7-Faça uma ilustração para crônica que acabou de ler.

8-Relacione com o texto o pensamento de Bertold Brechet: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento/ Mas ninguém diz violentas/ As margens que o comprimem.”