A Bicicleta Azul

Avancei pela sala, adormecida na penumbra, entre janelas abertas à luz cinzenta daquela manhã. Ouvi sua voz. A mesma que me convida em poucas palavras. Caminhamos juntos em direção à porta de madeira:

- Onde vocês estão indo?

Vovô sorriu e me levantou ao ar. Não precisavam palavras.

- Bom passeio! Voltem logo, a torta já está no forno.

Cruzei o jardim num vôo plano em mãos seguras, saboreando a brisa do inverno beijar minha face. A bicicleta estava ali, no canto, com seu azul que me levava ao céu. Pedaladas contra o vento. Faces iluminadas. Portão aberto: portas do paraíso.

Cumprimentamos o porteiro na calçada ao lado que varria o chão de pedras preguiçosamente. Contemplo as árvores, como se ocultassem uma imensidão entre seu verde puro, em seus troncos robustos. Caminhos de uma história. Folhas ao vento, planando nos canteiros, tocando a terra levemente. Um piscar. Não estão mais lá. Poucos carros passam ali. Um aceno ocupa as suas mãos.

- Seu amigo, vô? – perguntei observando o carro sumir na estrada.

- Quem? – vovô respondeu.

Amor mágico que se une à alegria de acenar para um carro qualquer buzinando rapidamente na estrada. Alegria da amizade. Outro carro. Outro adeus. Uma gargalhada. Felicidade de estar ali. Naquele dia de sol oculto, na cadeirinha da bicicleta azul, ouvindo o cochichar do vento, numa manhã de inverno.

A praça se estende. Poucas crianças em gritos de alegria, embaladas ao ranger dos balanços em suas cordas de metal. A reta proporciona uma pedalada suave e constante. Sorrio. A curva se aproxima. O freio trava os pneus no ruído das borrachas que se encontram. O asfalto torna-se perigosamente próximo. Fotos que percorrem o olhar rapidamente. Tudo é veloz em um tombo cruel, numa curva que nos trai. Choro.

- Está tudo bem... - falou vovô numa voz que se apagava pouco a pouco, dando-me suas mãos calorosas.

Um homem aproximou-se acolhedor por sua voz. Cabelos que já se alternavam em um louro que cedia espaço ao grisalho. Homem alto e destinado.

-Venham. Moro ali. – apontou para uma casa entre aquele mesmo verde que secreta – Precisamos fazer curativos.

Em outra oportunidade vovô poderia dizer que morava ali perto e que a mesa já estava servida. Não desta vez.

- Sou Paulo Autuori e vocês... – fez uma pausa.

- Luis e meu neto Fernando.

- Muito prazer... Ah, chegamos, sejam bem-vindos. Sentem-se – apontando-nos a mesa. – Buscarei a caixa de primeiros-socorros.

Enquanto conversávamos Paulo fez questão de fazer os curativos. Água boricada. Um gemido e um band-aid cobrindo a ferida, ainda com restos de sangue. Rumamos para nossa casa, recusando educadamente o almoço. Ainda olhei aquele homem sorrindo no fim da rua. O homem que, treze anos depois, seria campeão mundial em Tóquio sob o comando do São Paulo numa manhã de luz. Uma torcida especial.

Voltamos para casa em poucos minutos. Entramos na sala e vi algumas lágrimas no rosto de vovô, narrando toda a história.

- Isso não podia acontecer – disse ele ainda com lágrimas.

Um sol doce dominou a manhã seguinte. Vovô chamou-me e olhou para vovó determinado. Vovó apenas sorriu. Vovô levantou-me, saindo da casa e cruzando o jardim. Ela estava lá. Sentei na cadeirinha. Portão aberto. Magia que se repete.

Pescador de Olhares
Enviado por Pescador de Olhares em 15/09/2009
Código do texto: T1810882
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.