De São Paulo à Recife, da aparência à essência

De São Paulo a Recife

Uma das expecativas que tenho quando vou viajar é a de saber, seja por medo ou por desejo, as pessoas que vão ao meu lado. No check-in sempre opto em ficar no corredor para não incomodar os outros passageiros se de repente precisar ir no banheiro ou pegar algo. Prefiro ser incomodado do que incomodar.

Ontem (16/09) cheguei atrasado no aeroporto e me restava apenas três opções, todas no meio da fileira de poltronas. Também não gosto de viajar na parte traseira do avião, mas sei lá. No momento da escolha pensei comigo: "Tal viagem pretende ser uma nova etapa em minha vida e portanto preciso quebrar os paradigmas, vou escolher a poltrona do fundo mesmo: 28b". No caminho para o avião fui pensando no incômodo que causaria às pessoas que iriam ao meu lado, mas tudo bem. Entrei no avião, respondi o boa noite simpático das aeromoças e fui caminhando para o fundão do avião.

Com o violão em uma mão e uma mala na outra naquela adrenalina. A maioria das pessoas já estavam sentadas. E eu, todo bonitão, com meu violão, a mala de mão do São Paulo, perseguindo aquele corredor que parecia não ter mais fim. Mas chegou o meu lugar, 28b, detalhe: já estava ocupado por uma bolsa de uma moça do 28c. Arrumei a mala e percebi que para o violão não tinha mais espaço, chamei o comissário e ele me ajudou, um lugar logo arrumou. Só então pedi licença à moça e ao outro senhor do 28a e sentei-me. Sentei no lugar da bolsa que ali estava, ela talvez queria ficar ali e antes algo dizer como conotação: "Tomara que não tenha ninguém para esse lugar, assim eu posso ficar aqui e ficar mais próxima de minha dona!"

Mas que pena da bolsa, ocupei o seu lugar. Sei que posso ser também um mala. Considero-me sim, mas no sentido de trazer muitas coisas dentro de mim. Minha história, minhas experiências, meu desejo de aprender, de partilhar, no sentido de ter também sempre mais espaço para algo guardar. Ali estava eu, no 28b , ao lado de 28a e 28c, desconhecidos para mim até ali.

Como cheguei atrasado, não quis incomodar para ir até minha bolsa, pegar meu diário e escrever esse texto. Fui escrevendo na memória, colocando aquele momento dentro da linearidade do meu eu. Quem me dera eu pudesse compreender esse arranjo de chegadas e partidas na minha vida! De repente enxerguei e li uma frase que demorou dentro de mim:

"O futuro só é escuro para quem mantém os olhos fechados". Era algo nesse sentido escrito num pano que envolvia a poltrona da frente. Óbvio que os olhos fechados não se referem a visão enquanto tal, é mais no subjetivo do sujeito da frase. Abrir os olhos! Enxergar e não somente olhar! Ir mais além do que pode pode ser! Meditações que me vieram.

Depois, como sempre faço, fui entregar a viagem e tudo o que ela siginificava pra mim em oração. Rezando o terço, no silêncio, me entregando e também a todos que ali estavam, cada um na sua luta, no seu momento, na sua viagem e no que ía além de tudo aquilo.

Uma bala pra adoçar a vida, e ali a expectativa para a partida. Mais uma vez rezei: Em nome do Pai, e do Filho e do Espírito Santo. Olhei e enxerguei também a moça o sinal da cruz sobre si traçando e rezando. Pensei:"Que legal, deve ser cristã!" O senhor ao meu lado também demonstrava sê-lo, isto pelo título dos livros que folheava: "O poder de Deus e Reavivar o poder da chama". Olhava o 28a e 28c, mas começava a enxergar um senhor casado sério que parecia ser pastor e uma moça noiva simpática (que pediu mais bala e um copo d'água) que parecia ser estudante ou algo parecido.

A viagem parecia estar demorada, veio o lanche (que só provocou mais fome rsrs). Queria ir no banheiro, mas fiquei com medo de incomodar a "moça noiva, simpática e estudante". Obedeci a mim mesmo e pedindo licença fui ao banheiro. Voltei, agradeci, pude olhar e enxergar melhor a moça. Ela também foi ao banheiro. Esse intervalo foi para mim um preparo para ensaiar algo e puxar um assunto.

Primeiro, antes mesmo do banheiro, quis puxar papo com o senhor, perguntei o nome do autor do livro dele, ele me disse o nome. Contente, eu disse: -Já li o livro A oração de Jabez, acho que é dele também". Certo de que o assunto fluiria, recebi uma resposta meio seca: "Sim, é dele". Um sim que conotava pra mim um não, no sentido de que a conversa poderia cessar ali. Amém, me virei e tudo bem.

Aquele sim/não do senhor me bloqueiou? Mas...Não, não manter os olhos fechados!!! Assim que a moça voltou, se sentou e o 28b lhe perguntou: "Está estudando para alguma prova?" apontando para o livro que ela tanto lia e grifava. "Não, estou estudando para defender uma tese em um mestrado de antropologia". Ela respondeu um "não" mas que foi um sim, pois continha um sorriso lindo que parecia ser uma janela aberta que permitia o prolongamento da conversa. A partir daí, deduzo que a moça/noiva/simpática/com uma voz grave/estudante/bonita/sorridente, também não via somente o 28b, mas o Hudson.

A conversa flui na ânsia de querer conhecer e ser conhecido, no encanto de de repente se ter um novo amigo(a), colocando então mais coisas na mala que sou eu, que é meu coração. Assim a conversa flui: Antropologia, Filosofia, teologia, Seminário (nessa hora,ela perguntou: "porque você saiu do Seminário?" Bem que ela deveria ter lido duas mensagens anteriores nesse blog, que pergunta difícil!), entrevista, documentário, Recife, bolo de rolo, tubarão, matéria no mosteiro, repórter, Record, "mulher importante", Ipatinga... (nessa hora o senhor entrou na conversa e mostrou-se simpático).

E de repente, o senhor/casado/sério/simpático de Ipatinga já não era mais o 28a; o jovem de violão na mão que ocupou o lugar da bolsa, que leu o livro Oração de Jabez, que conhecia um pouco de antropologia, que era seminarista (era fr.João e agora é Hudson) e estava indo morar com o pai já não era mais o 28b; e a moça noiva/simpática/de nome Gilmara/bonita/sorridente/de voz grave e suave/estudante/repórter da TV record já não era mais o 28c.

No mundo hodierno muitas vezes o que é escuro é o limitado mundo que as pessoas criam. Muitas resolvem fechar os olhos, talvez queiram apenas olhar, limitando assim o território do eu, do tu e a possibilidade do nós. Como é bonito o sorriso, a amizade, a partilha, a entrega.

Como é necessário quebrar os nosso paradigmas sobre o homem, eis uma antropologia necessária. É bem verdade que "tudo o que é sólido se desvanece no ar" (me parecia ser esse o título do livro da Gilmara). No ar, naquele avião, pude viajar de São Paulo a Recife, enxergando nessa viagem uma metáfora na distância que terei que percorrer continuamente nessa minha nova etapa: a distância da razão ao coração. Onde muitas vezes o que é sólido terá que se desvanecer para que o que tem valor perene possa permanecer.

"Está estudando para a prova?" Perguntei também à mim mesmo, diante de tudo isso que estou vivendo. O interessante não é ter somente resposta pronta, é mister aprender a conviver com a pergunta no afã de algo receber e aprender com aquilo que ela pode proporcionar além da resposta. É perceber possibilidades e não somente os palpites do que é limite.

Enfim, o que ficou nisso tudo pra mim, é saber que a interrogação é ponte para a exclamação. Uma pergunta simples feita em forma de pretexto gerou uma agradável conversa, ponto de interrogação. Depois, já em terra firme, uma sincera despedida e nela talvez uma amizade refletida, ponto de exclamação.

Se no ar as coisas sólidas se desvanecem, pode ser que na terra as coisas líquidas têm mais consistência. Principalmente quando a terra é o solo do coração, onde as sementes são recebidas e transformadas em VIDA. O que fica guardado no coração (que também é bolsa) e no interno, tem caráter perene e eterno.

Grito através do silêncio provocado por um interior conflito.

Indefinido, mas em busca de um sentido, de um caminho, é como me sinto.

Livre para direcionar o que sou ao que devo ser diante de Deus.

Mas aqui, nesse avião, experimento multidão e solidão, medo e aventura do novo no coração, na poltrona 28b...

Algo eu posso ler num escrito da poltrona à minha frente: O futuro só é escuro para quem

Resolve fechar os olhos. Depois de uma tentativa "negativa" com o 28a, quis assunto puxar com o 28c: "Está estudando para prova?"

A moça respondeu-me: "Não, é para defender a tese do mestrado sobre antropologia". A partir daí a conversa fluiu e a luz se acendeu.

Hudson Roza
Enviado por Hudson Roza em 18/09/2009
Código do texto: T1818354
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