Dois cearenses 
           e a meretriz


     1. Passando pela Saraiva, comprei um livro que reúne os melhores poemas do Patativa. Versos maravilhosos do saudoso poeta cearense cuidadosamente selecionados pelo escritor Cláudio Portella. É uma excelente oportunidade para curtir a poesia singela, inteligente e espontânea do famoso e inesquecível vate do Assaré.
     2. Com o retorno dos meus netos ao Rio de Janeiro - depois de um movimentado período de férias em Salvador - o silêncio voltou ao meu gabinete de trabalho, no seu dia a dia, um lugar inspirador e tranquilo. Deu, então, para ler, com calma, o belo livro do Claudio Portella.
     3. No primeiro momento, pretendi escrever sobre um tal de "sabiá vaidosos" que o Patativa descreve em versos irretocáveis; seria uma grande sacanagem deixar de transcrevê-los, aqui. 
O sabiá vaidoso
 "Um sabiá vaidoso do seu canto,
 Se julgava um maestro quase santo
 E de todas as aves a primeira
 Na linda copa de uma laranjeira.
         Seu gorjeio repleto de doçura
         Despertava saudade, amor ternura,
         De orgulhoso e vaidoso ele pensava
         Que o mundo inteiro a ele se curvava,
         Com a força vibrante da harmonia
          Novas notas criou naquele dia.
 Um simples passarinho, uma avezinha,
 Que nem sequer no mundo um nome tinha,
 Por direito que assiste ao passarinho
 Naquela copo fez também seu ninho
 E modesto, com muita singeleza,
Obedecendo à sábia natureza,
Cheio de vida o seu biquinho abriu:
        Piu, piu, piu, piu, piu
        Piu, piu, piu, piu, piu
        Piu, piu, piu, piu, piu.
O sabiá se achando enfurecido,
 Para ele falou, seu atrevido!
 Com este canto que soltaste agora
 Tu desvirtuas minha voz sonora, 
 Com a tua cantiga dissonante
 Tu não passar de um bicho ignorante,
 Eu não quero te ouvir perto de mim,
 Quem te ensinou cantar tão feio assim?
       Do passarinho pobre de harmonia,
       Mas muito rico de filosofia,
       Logo a resposta o sabiá ouviu:
       - Este meu canto, piu, piu, piu, piu, piu,
       Que o destino fiel me permitiu
        Para ninar os filhotinhos mes,
        Seu sabiá quem me ensinou foi Deus!
      4. Como passarinheiro, esse poema do Patativa do Assaré podia perfeitamente ter me levado a escrever uma crônica falando do sabiá - exímio cantador - que um dia hospedei na minha varanda, de repente transformada num imenso e sonoroso viveiro. Nessa varanda cheguei a criar mais de dez passarins!
       5. Dedicar-lhe algumas laudas como fiz, tempos atrás, com o meu pintassilgo de estimação ao lamentar-lhe a inesperada morte, numa madrugada de verão baiano.
        6. Contar sua surpreendente fuga, aproveitando-se de um imperdoável cochilo deste cronista, enquanto lhe oferecia uma manga-rosa, como café da manhã. Encontrou a portinha da gaiola aberta e se mandou, num voo rápido e ousado. 
        7. Entre um pedaço de fruta doce que eu lhe dava com o costumeiro carinho e a liberdade definitiva, ele preferiu ganhar o espaço, e saiu em busca, quem sabe, de uma velha laranjeira perfumada. Voou silencioso; sem dizer adeus num gorjeio de felicidade.
      8. Mas um soneto do Patativa sobre a prostituta, no referido livro, chamou-me a atenção. E me fez lembrar outro poeta cearense que também escreveu versos dedicados à meretriz. Falo do padre Antônio Tomás,  um dos principes dos poetas alencarinos.
       9. Vejamos, primeiro, o soneto do Patatiiva.
                    À Meretriz
        Se alguém te chama de perdida e louca
        Não acredites, pois não é verdade,
        Há quem procure cheio de ansiedade
        A graça e o riso que tu tens na boca.
             Foste menina, já usaste touca,
             Foste donzela, tinhas virgindade,
            Tudo é fugaz e tudo é brevidade
            De qualquer forma, a nossa vida é pouca.
         Nunca lamentes teu viver de puta,
        Entre os pomares tu também és fruta,
        Alguém te estima e com fervor te quer.
            No chão, na cama ou dentro de uma rede
            Tu és a fonte de matar a sede
            Do desgraçado que não tem mulher.
     10. Agora o soneto do padre Antônio Tomás, que pagou caro pela ousadia de escrever versos falando de putas, vítima da intolerância clerical do seu tempo.
                    A Meretriz
        Essa mulher de face escaveirada
        Que vês tremendo em ânsias de fadiga
        Estendendo a quem passa a mão mirrada
        Foi meretriz , antes de ser mendiga.
               Em breve fugiu-lhe a sorte airada
               A mocidade, a doce quadra amiga
               E ela se viu pobre e desgraçada
              Antes de tempo, a tanto o vício obriga.
       Ontem, do gozo e da volúpia ardente
        Fosse a quem fosse dava a qualquer hora
        O seio branco e o lábio sorridente.
               Hoje, triste sina, embalde chora
               Pedindo esmola àquela mesma gente
              Que de seus beijos se fartara outrora.
       11. Para alguma "mulher da vida" que por acaso leia esta minha crônica, o conselho do Patativa: "Nunca lamentes teu viver de puta,/ Entre os pomares tu também és fruta,/ Alguém te estima e com fervor te quer."
      12. Ah, a "Mulher da vida, minha irmã", como Cora Coralina chama a meretriz num de seus mais bonitos poemas.

        
   
         
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 23/01/2010
Reeditado em 17/01/2017
Código do texto: T2046855
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