Pai e Mestre

                          
(No dia dos pais)



     1. Meu pai não chegou a concluir o curso primário. Mas tinha uma indomável vontade de formar os oito filhos que lhe deram as noites de amor, com minha mãe, no acolhedor sertão cearense. Em minha casa, só não ganhou um diploma quem não quis. 
     2. Pequeno comerciante no interior do Ceará, o Velho enfrentou, com audácia e grandeza, os percalços de sua profissão. Morreu sem acumular patacas, mas com dignidade. Como herança, deixou-me um irretocável exemplo de vida: foi um homem bom, justo e correto.
     3. Deu-me as melhores escolas de minha cidade. Mas não permitiu que somente às professoras coubesse a tarefa de me ensinar as primeiras letras e fazer as primeiras contas. Com sua ajuda, abri a primeira cartilha e a primeira tabuada.
      4. Como disse, estudou pouco. Mas era um craque nas quatro operações: somava, diminuía, multiplicava e dividia com impressionante desembaraço.Tinha uma letra firme, forte e excelente. A ele eu devo a minha caligrafia, que dizem ser muito boa. 
     5. Na minha Faculdade, cursando Direito, um querido professor falou-me muitas vezes da satisfação que sentia em corrigir até as bobagens que eu escrevia, tudo por causa da minha "excelente" letra.
     6. Aprendi, com facilidade, as primeiras regras da gramática. Mas, muito cedo, mostrei que jamais seria um bom matemático. Meu pai ignorava minha ojeriza aos números; sempre exigia que eu estivesse com a tabuada na ponta da língua.
     7.
 O Velho também me ajudou a conhecer um pouco de música. Graças a ele, ainda criança, fiquei sabendo o que era uma Clave de Sol e uma Clave de Fá; e a distinguir o sustenido do bemol.  Na sua juventude, ele fora um excelente clarinetista,  me disse minha mãe, sua musa, em memoráveis noites de serestas.
     8. Apareceu na minha cidade, vindo dos Estados Unidos, um pastor protestante. O gringo chegou, e, imediatamente, montou um cursinho de Inglês. Meu pai, sem me consultar, comprou uma gramática, e me matriculou no curso do americano. O pastor demorou pouco no Iguatu. O curso acabou, e eu fechei a gramática inglesa para sempre. Até hoje, me arrependo. Mormente quando ouço meus dois filhos, Paulo e Adriano, falando inglês fluentimente. 
     9. Durante muitos anos frequentei os seminários seráficos; queria ser franciscano.  Sem vocação, tive que abandoná-los. O Velho ficou frustrado: ele queria um filho frade. Fiz-lhe ver, que preferia ser um bom católico a ser um sacerdote calhorda. Ele aceitou esse meu argumento.
     10. Em Fortaleza, me matriculei no Liceu do Ceará onde conclui o curso científico. O pai passou, então, a se preocupar com meu vestibular. Uma noite, num papo descontraído, disse-lhe da minha vontade de ser dentista. Ele pensou... pensou, fez um rodeio danado, e me perguntou: " Você não gostaria de ser advogado?" 11.
No início da década de 1950, nos cafundós do Nordeste, o advogado era um profissional respeitado. Afinal, era o doutor que sabia ler, escrever, falar, e conhecia bem as Leis. Tinha, por conseguinte, tudo para enfrentar, com destemor, a ousadia dos "poderosos" do sertão. Meu pai sabia disso.
     12. Muito bem. Tomei a indagação do Velho Raul como uma sugestão válida. Tratei de esquecer o boticão, e comecei a pensar na beca, na toga e no anel de rubi.
     13. Egresso dos seminário, passei com relativa facilidade no vestibular. Na Faculdade de Direito da Universidade do Ceará cursei o primeiro ano. 
     14. De repente, motivos de ordem particular, naquele instante inarredáveis, forçaram minha transferência para a Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia.  Em Salvador, no dia 8 de dezembro de 1961, colei grau.
     15. Com o canudo de bacharel na mão, fui curtir o Réveillon do ano da formatura em Fortaleza. Na minha modesta casa, na Rua Agapito dos Santos, no bairro de Jacarecanga, reuni os amigos e a parentela, numa bela festa. 
     16. E diante de todos, comovido, ofereci meu anel de doutor ao meu pai, meu mestre. 
Choramos juntos sob o olhar carinhoso e compreensivo de Maria Luiza, minha mãe, hoje, no céu ao lado do meu Velho...
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 12/08/2006
Reeditado em 31/08/2017
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