Aquele trem malvado


     1. Em outras crônica andei falando sobre trens.  Principalmente aqueles puxados pelas velhas marias-fumaça, de viagens demoradas, cansativas, mas, de repente, agradabilíssimas.
     
2Queria dizer, que tenho viajado nos TGVs da vida mas, até agora, nada de extraordinário neles chamou-me a atenção, além de sua vertiginosa velocidade.
     
3. Velocidade que, às vezes, chega a ser prejudicial e desnecessária. Ela tira do passageiro, em férias, sem muita pressa, portanto, o prazer de ver, na intimidade, as terras que o TGV vai atravessando.
     
4Em outras palavras, tira do turista o prazer de curtir belas paisagens; muitas, a depender do local, deslumbrantes; como, por exemplo, as que oferecem os vales da Úmbria, de Francisco de Assis.
     
5No TGV, não há janelinhas abertas para o mundo permitindo que o passageiro veja os riachos  acompanhando o trem e as flores dos campos que o comboio vai rasgando.
     
6Não faz muito tempo, fiz, com Ivone, de Paris a Lourdes, em menos de seis horas, a bordo de um TVG. A velocidade foi tanta que não me foi dada a felicidade de admirar um pedaço considerado maravilhoso da bela França; onde estão cidades como Poitiers e Bordeaux.
     
7Tudo muito rápido. Mas a viagem tinha que ser de TGV. Centenas de quilômetros separam a capital francesa da gruta milagrosa de Lourdes, para onde, em peregrinação, me dirigia. 
     
8Disse em algum lugar, e aqui, redigo, que nasci ouvindo o apito dos trens. A família de minha mãe era toda ela ligada à estrada de ferro do Ceará, ocupando meu avô e meus tios cargos de destaque na ferrovia cearense que, à época, atendia pelo nome de RVC. 
   
9. Os trens, portanto, estiveram presentes na minha infância. E o que a gente tem de bom na infância, o tempo não destrói. Os anos avançam e mais vivas ressurgem as boas recordações dos tempos de menino. Isso é encantador!Isso é formidável!
     
10Já cheguei a comentar, não sei se em conversas vadias ou em crônicas sem a menor importância, que nada mais alegre do que um trem chegando e nada mais triste do que um  trem partindo. Deixo o trem chegando para outra crônica e passo a falar sobre o trem partindo.
      
11. Um trem partindo é  um momento de saudade; para quem fica e para quem vai. Parece não existir lugar mais triste do que uma estação ferroviária, logo depois que o trem se foi.
É assim nas capitais; é assim nas cidades do interior. Nessas, então, e não sei por que, a saudade é mais contundente. Chega a ser constrangedor ver o trem sumir onde a linha férrea parece desaparecer no mato.
 
     
12Já senti saudades, vendo um trem partir...
Antes de contar como, quando e por que, deixe-me, meu dileto leitor, voltar - outra vez? - ao "Eu, em pedaços", do querido escritor Carlos Heitor Cony, que esta madrugada acabei de ler.  
       
13. Nesse seu livro de memórias,  Cony conta uma historinha de trem que lhe aconteceu no seu tempo de seminarista; quando, segundo ele, se achava "isolado do mundo pela batina".  
       
14De férias numa "cidadezinha à beira da estrada de ferro", ele caminhava pela plataforma da estação. Havia um trem parado, aguardando ordens para partir.
    "Súbito - diz Cony -, numa janela do trem, lá estava a moça que me olhava". E prossegue: "Quando senti que ela me olhava, parei de caminhar e enfrentei o seu olhar."

     
15E mais adiante: "Olhei-a mais profundamente, e ela compreendeu.  Foi uma eternidade estraçalhada em segundos: o trem começou a andar, e ela foi se afastando. Afastou-se tanto que nunca mais voltou."
     
16. Lendo a história do Cony, lembrei-me de que algo parecido me acontecera, no meu tempo de seminário. Rapidamente. Namorando um menina, quis lhe dar um long-play de presente, com músicas do Lucho Gatica, atento à sua preferência por boleros. 
     - "Por eso, yo te pido por favor/ me esperes en el cielo/ y ahí entre nubes da algodón/ haremos nuestro nido".
     
17O disco lhe devia ser entregue na estação de Fortaleza, antes do trem partir, levando-a de volta para sua cidade, longe da capital. Tudo  debaixo do mais rigoroso segredo, conforme havíamos combinado.
     
18Cheguei à estação quando a maria-fumaça, a 408, apitando, iniciava a partida. Com o long-play nas mãos, na estação quase deserta, fiquei desolado...
E ela, sem nada poder fazer, da janelinha do trem em marcha lenta, mandou-me uma mensagem de amor,  um terno adeus, em um sorriso doce, que guardo até hoje.    Que trem malvado, aquele!

Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 08/09/2010
Reeditado em 26/09/2019
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