O Apito

Inferno!... Era, realmente, um inferno aquela situação. O bebê conseguia dormir; a mulher conseguia dormir. Em suma: todo mundo conseguia dormir. Só ele, Apolônio Fulgêncio, por mais que tentasse, não conseguia superar o cansaço do labutar diário, repondo as suas forças, suas energias, com uma boa noite de sono.

As suas forças e energias não eram repostas, não que fosse um problema de sonambulismo da sua parte, ou mesmo que os demais tivessem o sono pesado; além dele ter o sono leve, existia um problema ainda maior; era um cachorro da casa ao lado, que infernizava a sua vida, não o deixando dormir.

Então, partindo desse princípio, o que dava para se notar não era o problema de família, era, simplesmente, o cão do vizinho que incomodava Apolônio com os seus uivos e latidos noturnos, como falado antes, infernizando a vida de um pacato cidadão que por demais carecia dormir.

A vida de Apolônio tinha virado um pesadelo dos piores que se poderia ter. Não que o mesmo tivesse visões nos sonhos ou estivesse a cair de um precipício, em pesadelos; Apolônio, ultimamente, andava tão sério por não ter o privilégio de dormir, muito menos o privilégio de sonhar, que era visível a mudança facial. O mesmo a cada dia demonstrava-se mais e mais amargurado. Todos vinham notando as mudanças de um simples e pacato pai de família. A transformação que o mesmo demonstrava, ia fazendo com que os vizinhos e amigos afastarem-se dele.

Ele mesmo sabendo que o cão era o responsável pelo problema que estava enfrentando, isolava não só a vizinha (dona do animal), e sim todos os outros vizinhos. Vivendo portanto, num isolamento e desprezo recíproco.

Ele desprezou até mesmo o bom dia, cumprimento diário e comum, ao dirigir-se ao trabalho com tanta pontualidade, que mais parecia um ritual.

– Não tem importância. Essa plebe não vai me matar dos nervos, não! Eu vou achar um jeito para esse problema–falava sozinho sem mesmo perceber que as pessoas o olhavam com ar de reprovação e indiferença.

– Olha lá, Noca! Só porquê conseguiu a gerência no posto de gasolina, não fala mais com os vizinhos. Ô bicho besta!–falou à esposa, Cipriano, um dos ex-amigos do Apolônio.

Depois de conversar com um colega de trabalho, resolveu procurar a Organização de Defesa dos Animas Maltratados (O.D.A.M ), seria o jeito mais viável, e no dia seguinte, ele ligou para o seu trabalho avisando ao patrão que teria um probleminha a ser resolvido e que chegaria um pouco mais tarde.

Foi direto à ODAM e relatou o seu problema.

– O.k., senhor! Nós iremos lá!–disse-lhe um velhinho branco, baixinho, de óculos de grau muito elevado e todo arranhado, depois de fazer algumas anotações.

Saiu do órgão público mais feliz que criança pobre ao receber um presente do Papai Noel. Não que ele tivesse recebido algum presente onde fora, mas por fim, teria o sossego esperado; agora sim, pelo jeito, conseguiria dormir–pensou o homem.

Um carro da Vigilância Sanitária foi até a casa onde o cachorro infernizava a vida do vizinho reclamante. Lá chegando, constatou que o animal era muito bem tratado. Verificou que o cão tinha em dia o seu cartão de vacinas e uma boa alimentação; sem falar que a mulher o tratava com muito cuidado e carinho e fez questão de exibir várias receitas do veterinário, ao representante da Lei.

– Dr., eu não posso ter filhos e é por isso que dedico todo o cuidado aos animais. Eles são dóceis, indefesos, sem falar que são os melhores amigos do homem–falou a velhinha, proprietária da fera, enquanto acariciava um gigante cão que, embalado pela carícia da proprietária, fechava os olhos.

Nada mais podia ser feito pelos funcionários público que, admitamos ou não, tinham feito a sua obrigação. Agora era contar com a compreensão do incomodado e que tudo seria resolvido sem maiores problemas.

Durante toda a noite aquele cidadão sofreu o mesmo problema; a sua paz, a sua tranqüilidade, que fora mais planejada que o lançamento de um foguete espacial, e que seria algo eminente, foi quebrada pelos gritos estridentes e vigorosos que pareciam querer estourar os tímpanos daquele morador como que em protesto ao delator.

No dia seguinte, com olheiras e rosto chupado por diversas noites de sono passadas em claro, Apolônio Fulgêncio, mais uma vez foi ao órgão municipal e encontrou o homem baixinho de óculos de grau e que o recepcionou dia anterior:

– Pois, não senhor?... Em que posso lhe ser útil?

– Sim! O senhor não pode só me ser útil, como também, fazer jus ao teu salário que eu, contribuinte, pago. O senhor irá me ajudar indo à casa da Rua 222, número 222 e dar um jeito naquele maldito cachorro que insiste em infernizar a minha vida–falou, indignado.

– Há! Agora me lembro que o senhor esteve ontem aqui, não?!–perguntou o homem de óculos de grau que apertou a mão do reclamante e sem dar ouvidos aos últimos insultos do indignado homem que estava à sua frente.

– Sim, senhor! Agora vejo que o senhor tem boa memória, que incrível... Que novidade... O senhor, agora, está lembrando-se que eu estive aqui ontem, que coisa–falou com escárnio.

Inocentemente, o humilde homem, ajeitando o óculos, ainda lhe sorriu com ar de simpatia e pediu que o mesmo o aguardasse um instante.

O homem foi ao arquivo e do mesmo retirou algumas pastas enquanto tentava encontrar o Registro de Ocorrência.

“–... Senhor... Apolônio... Aqui está!”–continuou–a nossa equipe em defesa dos animais foi ontem ao endereço em que houve a reclamação, e lá chegando, não encontrou nada que pudesse enquadrar o animal, quer dizer, a proprietária do animal!

Mostrou-lhe em seguida cópias das vacinas, e complementou com as informações de que o animal era mais bem tratado que certas crianças. Chegou até mesmo em dizer, ao ouvido do Apolônio, que soube que a velhinha levava o cão a um salão de beleza.

– Vocês devem fazer alguma coisa! Vocês precisam me ajudar!–falou Apolônio, quase em súplica.

O omem explicou-lhe pacientemente mais uma vez que nada podiam fazer e pediu-lhe desculpas.

Desgostoso, Apolônio viu que não tinha jeito a fazer. Mas ele sabia que só não tinha jeito para a morte.

Enquanto estava na cama tentando dormir e não conseguindo, matutou um jeito de destruir o infernal animal e o que poderia fazer, de imediato, seria tapar os ouvidos com os dedos, enquanto de nervosismo trincava os dentes.

Quase cochilando, o uivar do cachorro fez com que o mesmo despertasse de repente a viver o seu pesadelo noturno. Pelo jeito, a noite seria igual ou pior que as noites anteriores.

Mas, sem mesmo perceber, veio em sua mente uma recordação de muito tempo; lembrou-se que há muitos e muitos anos atrás tinha ouvido falar sobre um pequeno instrumento musical. Era algo diferente, desconhecido para ele, e possivelmente, para muitas pessoas. O tal instrumento musical, era, mais precisamente, um apito. Não um apito de navio, de trem, de carro... Era um apito. Um apito exclusivo para adestrar cachorros.

Apolônio, ainda incrédulo, ficou se perguntando como não tivera essa idéia antes?...

Logo cedo saiu de São Pedro da Aldeia e dirigiu-se para a cidade vizinha, mais precisamente Cabo Frio, a fim de encontrar o aparelho que a sua mente fértil o lembrara. Mais uma vez ligou para o patrão avisando-lhe que chegaria um pouco mais tarde, mas não avisara o problema.

O patrão a alguns dias percebia que o mesmo já não estava rendendo no trabalho e não chegara a comentar com ninguém mas sentia que Apolônio andava muito diferente, sem falar nos constantes atrasos.

Chegando em Cabo Frio seguiu diretamente até a loja que vendia material pecuário. Portando-se como um apreciador de arte; entrou na loja onde vendia vários produtos e nada falou. Simplesmente, olhava lentamente cada produto exposto naquela loja sem avistar o que desejava.

– O que o senhor deseja? – perguntou-lhe uma jovem balconista.

– Muito obrigado, moça. No momento, só estou olhando. Se eu precisar de algo, eu te aviso –falou lembrando do velhinho da ODAM. Se foi a única pessoa que ele precisou e não o ajudara, não seria agora que iria precisar de ajuda. Muito menos, iria precisar da ajuda de uma mulher!

Apolônio olhou vários produtos. Encontrou o que ele precisava; tinha encontrado o apito. Pequeno e aparentemente um simples instrumento de madeira.

– Agora aquele vira-lata vai ver o que era bom prá tosse... – sorriu. Não um sorriso de felicidade, um sorriso amistoso, e sim, um sorriso de vingança. Um certo sorriso... Sorriso de alguém que planeja uma vingança há vários dias e agora teria o privilégio de saboreá-la, degustá-la lentamente.

Olhou para a jovem que nada dizia e só o observava e, por fim, falou:

– Senhorita, quero comprar um daqueles apitos!

– O senhor sabe para que o mesmo serve?–interrogou-lhe a vendedora.

– Com quem você pensa que está falando? Com algum idiota, é? O seu patrão sabe que você trata os fregueses como se os mesmos fossem mentecaptos?- esbravejou.

– Claro que não. Me desculpe. Eu não tive a menor intenção de ofender o senhor. Só tentei ser simpática– desculpou-se, ainda assustada.

Sem ao menos dizer obrigado, ele pegou o pequenino pacote e deixou a loja irado e esbravejando, mas satisfeito com a mais nova aquisição. Saiu daquele recinto com passos largos.

Já seguindo em direção ao ponto do ônibus, que o levaria de volta a São Pedro da Aldeia, ele de vez em quando apalpava o bolso da calça quase sem acreditar no que tinha conseguido; tinha conseguido, enfim, um jeito de recuperar as suas noites mal dormidas. A partir daquele momento poderia considerar-se um homem feliz, pois iria conseguir dormir qual um anjo, por fim, achara uma maneira de recuperar a paz tão sonhada, sem contar, com a vingança.

Não falou para esposa muito menos para seus filhos do objeto que comprara em Cabo Frio.

Na noite que se sucedera ele começou a assoprar o pequeno objeto que comprara e não ouviu mudanças no uivar do cão. Imaginando que o pequeno instrumento estivesse com defeito, continuou a soprar diversas vezes e não ouve mudança alguma no comportamento do animal.

– A miserável da balconista de olhar angelical me enganou–esbravejou.

Voltou para a cama e com os dedos pressionando os ouvidos para não ouvir o ladrar do cachorro.

Na manhã seguinte, o mesmo, mais uma vez, dirigiu-se a Cabo Frio. Embora o comércio funcione a partir das 8h, Apolônio já encontrava-se em frente a loja onde comprara o instrumento, às 6h29min. Ele estava tão transtornado por ter sido enganado, segundo seus pensamentos, que não lembrou de ligar para o patrão, que, às 7h15min, já havia sido informado de que o posto de gasolina estava fechado, e mais que depressa, correu para abri-lo.

Às 8h05min, a loja foi aberta. Antes mesmo que a vendedora abrisse a última porta, ele começou a quebrar tudo dentro da loja e a xingar a moça que, não sabendo do que se tratava, foi obrigada a acionar a polícia que em poucos minutos deu ordem de prisão a Apolônio Fulgêncio.

Depois de algemado ele começou a falar coisa com coisa e resolveram chamar um médico. O médico, encontrando na mão de Apolônio um apito que emite ultra-som ( freqüência acima de 20.000hz, e inaudível por seres humanos), percebeu que algo de grave estava acontecendo com aquele senhor e achou melhor chamar um psiquiatra.

Só conseguiram conter Apolônio dentro de uma camisa de força.

Depois de examinado, viram que a melhor maneira seria enviá-lo para uma Clínica de Repouso.

Faz dois anos que ele é hóspede da clínica e, para matar seu tempo, ele escolheu fazer algo de útil...

... Para garantir que todos os apitos funcionem e que ninguém venha ser enganado, resolveu ser árbitro de futebol. Embora não existindo jogadores no estádio, ele não se preocupa; o mais importante não é, na realidade, ter jogadores, e sim, correr de um lado para outro durante toda a noite no estádio da Clínica de Repouso ( pineu), onde é morador.

Quanto ao cachorro... O cachorro, que tinha tratamento especial, foi constatado, através de um laudo do veterinário, é SURDO. Mas a sua surdez não interfere em nada; ele continua a ladrar ao lado da casa onde moram os familiares do Apolônio Fulgêncio, e que dormem como anjos sem serem importunados por seus latidos. Só acordam cedo aos domingos, quando vão ao “pinéu” visitar um certo árbitro que sonha em apitar uma final da Copa do Mundo. E que brevemente deseja voltar para o lar, doce lar?!...

Todos os meus trabalhos estão registrados na Biblioteca nacional-RJ

carlos Carregoza
Enviado por carlos Carregoza em 18/10/2006
Código do texto: T267393