Jesus era pardo

O pobre nazareno trucidado pela maldade humana dos romanos em sua terra de escravizados mal poderia sonhar que fizessem dele um ícone de transformações longe de Belém e no norte do continente africano. Na escuridão intelectual daquela época toda magia era vista como coisa sagrada e todo desconhecido era um mistério e toda cura um milagre. Nada mais desgraçado para a população global do que a cegueira histórica dos fatos contextualizados no tempo de modo atípico.

Lá está à velha Marmota com seus noventa e dois anos de idade. Religiosa como um relógio. Até hoje não sabe que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. Reza com fervor á italiana. Para ela pouco importa a cor real do mundo. Sua vida de graça e conforto se traduz por um desinteresse bem definido pelas dores do mundo. Rezar é uma maneira evidente de esquecer o mundo ao seu redor, exceto quando de modo egoísta pretende alcançar alguma graça particular. Um lucrozinho. A humanidade só reaparece no sentimento de unidade dentro da própria alienação. É como se todos alienados juntos formassem uma força e formam de fato politicamente. Outra faceta de Dona Marmota é que ela nunca gostou muito de negros, porém jamais se disse racista. Ela repara: “como tem negro nas novelas!” Negro é fixação aglutinada na forma humana das pessoas. Aquele tem nariz grande, aquela é negra, este tem calvície. Tudo por que nestes anos todos conviveram com a ideia sacra de um líder branquinho como uma hóstia. Confinados dentro de imagens perfeitinhas atacadas pelo mal que é o feio. Quando repara nos negros eu sempre lhe digo: Jesus era negro, pardo. Branquinho são essas imagens impostas pelo renascimento. Da tradição nas iluminuras que fizeram a grande troca da mitologia para o monoteísmo do oriente místico. Ela retruca dizendo que tudo é mentira. Mostro jornais, livros, mas nada convence sua atitude de fé cega. Tem a imagem de Jesus que lhe salva da mesquinharia egocêntrica, contudo abençoada a cada ritual que jamais perde. Um rito onde até hoje os judeus são mal vistos e mal falados como se fossem culpados das atrocidades cometidas contra o seu jovem contemporâneo de liderança isolada.

Todos os mitos são iguais para variações de medo e desespero. Para que serviria um Deus que abrisse mão da sua condição de “todo poderoso”? A ideia de grandeza fortalece a alma com requinte nesse jogo de cena entre o futuro obscuro e a delicada compleição humana que há de se desfazer na terra com os vermes, pois quem cria carne...

Dona Marmota é rica. Quando alguém precisa de dinheiro ela se reúne com outras idosas riquíssimas, fazem chá para arrecadar dinheiro. Pedem dinheiro aos outros para doar. Essa é a fórmula central dos templos medievais ainda erguidos como restos de uma época cruel exercida pelos seguidores da fé. Por sorte hoje temos o pós-tracionalismo que pretende recuperar a razão dentro da lucidez contra o infantilismo das noções práticas.

Dona Marmota está feliz e mais ainda ao saber que o seu líder espiritual, ex-garoto hitlerista, virá ao Brasil para saudar um povo majoritariamente negro com seu talento de orador. Lúcidos todos levantariam os braços e diriam: ai, Jesus! Padre Amaro, Eça de Queiroz. Mas isso pode soar como pouco democrático. Leia-se: Jesus era negrinho como o negrinho do pastoreio, faltou-lhe apenas os evangelhos da ficção e a publicidade de nossa era.

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Tércio Ricardo Kneip
Enviado por Tércio Ricardo Kneip em 16/08/2011
Reeditado em 09/09/2011
Código do texto: T3163193
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