L E M B R A N Ç A S


É uma viagem ao passado que acontece deixando marcas.
São como filmes cujas cenas vão sendo projetadas em nossa mente, retratam acontecimentos vividos: nossa infância, a escola, os professores, os namoricos e mais adiante o primeiro beijo.
Afloram sentimentos que alguns carregamos na bagagem e valem a pena. Contudo, outras precisam ser deixadas pelo caminho sem vontade de revê-las. Sinto-me como que transportada para realidades distantes quando muitas coisas boas povoam a nossa mente e através delas também aprendemos evitar os erros ou idênticas falhas. Muitas pessoas passaram em nossas vidas e também deixaram marcas e hoje reconhecemos que deviam ter recebido de nossa parte, melhor atenção, doaram algo de si que entrou em sintonia com a nossa alma proporcionando um aprendizado diversificado que nos faz sentir saudades.
Muitas lembranças são permanentes, outras dependem de fatos, como o ouvir de uma música, ler uma carta ou abrir um e-mail, olhar uma foto, ou ao passar por algum lugar, conforme a maior ou menor sensibilidade, estes fatos nos fazem sofrer ou reviver.
Muitos sentimentos! Alguns deles deterioram nossos momentos, outros, porém, fazem bem ao coração. São retalhos daquilo que se costura dia após dia.
Não creio que seja possível apagar inteiramente aquilo que já fizemos ou dissemos, mas acredito que podemos encontrar em nossas lembranças a oportunidade de aprender e nos redimir logo adiante, fazer com que as boas lembranças sejam combustíveis para eternizar novos momentos, novos rostos, novas palavras, novas músicas, novas declarações, enfim, nova vida. Algumas são carregadas na bagagem, outras, porém são abandonados, mas as vezes fazemos o contrário: levamos lembranças que deveríamos esquecer e esquecemos o que deveríamos lembrar. O mais importante é encontrar a maturidade necessária para peneirar todos os retalhos que compõem a sua colcha “de vida’’. Voltar no tempo é impossível, A melhor maneira de ter um futuro promissor é criá-lo com coragem. Chega uma época em que nos damos conta de que tudo o que fazemos se transformará em lembrança um dia. É a maturidade. Verdadeiros amigos não saem da nossa memória, nem da nossa lembrança, pois fazem parte da nossa história.
A lembrança é poesia e as poesias são também lembranças. Quando elas são reviradas são inevitáveis as emoções, são como o abrir caixinhas de segredos, quadros, álbuns empoeirados, janelas. Logo um nó aperta a garganta e as lágrimas não podem ser evitadas. Às vezes me sinto no espaço dos sonhos, distante, perto das estrelas. Sem paredes estou cercada de aromas naturais e ventos, e ao rasgar os olhos no horizonte levito nas nuvens relembrando momentos.
Quando menos esperamos, a vida nos demonstra o quão pequenos somos diante de todo o seu poder. Sem que possamos ter a chance ao menos de implorar, ela nos tira pedaços, pedaços tão grandes que a vida vai se tornando vazia e sem sentido. O que nos dá a força de continuar são os pedaços que ficam e que são tão importantes tanto quanto os que foram tirados.
Somos humanos e, por mais força que façamos, é grande a dor dentro do coração, tão grande que algumas vezes parece que não conseguiremos suportar. E assim, a lei da vida segue nos arrancando pedaços, até o dia em que tudo acaba e nada mais seremos que um pedaço de alguém, pedaços de amor.

Buscando Frutos do Cerrado

Nasci no interior de Goiás, hoje Tocantins após a divisão territorial. Passei toda a minha infância num pequeno sítio chamado Água Franca, nome originado da riqueza hidrográfica existente ali. Tínhamos muito pouca diversão e para completar meu pai era muito severo. Não permitia seus filhos terem as regalias tão naturais dos nossos dias.
Nossa infância foi difícil, meus pais lutavam muito para sobreviver e criar seus filhos, os quais seguiam seus passos na luta pela vida.
Havia outra coisa, que sempre fazíamos, quando meu pai tinha folga. No período da gabiroba e outras frutas, íamos com meu pai para o mato, em algumas tardes, colher as frutinhas nos pés.
Ao sairmos, havia um ritual. Primeiro colocávamos botas, camisas de mangas compridas para não arranhar os braços, e alho nos bolsos das calças, para afastar as cobras. Chegávamos, algumas vezes a encontrar algumas, mas com o cheiro do alho que exalava de longe, elas fugiam rapidinho.
Meu pai ainda brincava. "Alho espanta até o capeta" rs, rs, rs. Apesar dele ser muito severo, quando começava a fazer gozação e brincadeiras, era muito divertido. Eram muitas risadas. Chegávamos a chorar de rir. Bom, voltando à catação de gabirobas, numa tarde daquelas de safra, pegamos o Gordini azul que tínhamos, e a criançada se juntou nele, menos minha mãe que não gostava, e partimos para nosso fantástico passeio. Lá chegando, colhemos muitas gabirobas. Levávamos sacolas de pano que minha mãe costurava para nós, uma para cada um. Estas eram presas à cintura e ficávamos sempre perto do meu pai, para não nos perdermos. Éramos obedientes, e ai de nós se não fôssemos, pois ao chegar a casa, a disciplina era certa. Podíamos esperar.
Ficamos por lá umas três horas. Saímos logo depois do almoço e voltamos por volta das 16 horas, pois meu pai ainda tinha que dar aulas no período noturno e neste dia tínhamos que aproveitar, era dia de sua folga à tarde. Era uma delícia! Havia umas gabirobas grandes, e eram deliciosas. Comíamos diretamente do pé, pois não havia agrotóxicos nem poluição. A gabiroba é uma fonte alimentar para aves, peixes e humanos, é uma frutinha arredondada, verde-amarelada com uma suculenta polpa que envolve várias sementes. É o vitaminado e doce sabor do cerrado. Frutifica de dezembro a maio. Nativa dos campos cerrados do Centro-Oeste e Sudeste brasileiros, pertence à família das Mirtáceas e nasce naturalmente em terrenos não necessitando de muitos cuidados.
O fruto, que constitui o principal recurso oferecido pela planta, pode ser consumido in natura ou utilizado para se fazer doces, sucos e sorvetes, além de servir de matéria-prima para o preparo de um delicioso e bastante apreciado licor.
De volta meu pai deu falta dos óculos, um par de lunetas (óculos à moda antiga). Ninguém sabia onde tinham ido parar que normalmente não saíam do seu rosto. Procuramos embaixo dos bancos do carro, pela casa, dentro das sacolas, por todos os lados, e nada... Como dar aulas sem enxergar, principalmente à noite? Ele começou a ficar nervoso e bravo! Sem saber o que fazer, comentou o fato com um vizinho que também era professor e este disse:
- Professor Alair, conheço um rapaz que é vidente. Ele é capaz de ver onde estão seus óculos e levá-lo até eles!
Meu pai nunca foi chegado a estas coisas, mas a causa era nobre e ele não podia esperar ou deixar de dar as suas aulas.
Como era período de verão, só escurecia em nosso sítio um pouco mais tarde, no desespero de causa, meu pai aceitou chamar o dito vidente para resolver o problema iminente. Lá se foi o professor vizinho, correndo atrás do vidente para ajudar meu pai. Uns vinte minutos depois chegam os dois lá em casa. Meu pai contou a ele a história e explicou que a última lembrança dele era de que estava suando e tirou os óculos, no meio do mato, para passar o lenço no rosto. Depois disto, não se lembrava mais.
O rapaz se concentrou, pediu silêncio a todos e disse:
- Estou vendo seus óculos pendurados em um galho de uma árvore pequena. Todo mundo riu, achou o máximo isto ser verdade. Ninguém acreditou, mas meu pai tirou a prova:-
_ Então vamos comigo lá neste lugar buscá-los. Você é capaz de localizar o lugar? O rapaz disse que sim, e mais que depressa, o professor vizinho, o vidente e meu pai seguiram o mesmo caminho, uma pequena trilha que fizemos, pois meu pai, ao entrar no mato, sempre levava um facão e cortava o mato fechado para que não nos machucássemos. Por esta trilha ele entrou e os outros dois foram atrás. Foram andando, andando, em silêncio. Num dado momento, o rapaz falou:
_ Os óculos estão aqui! Todos os três pararam e ele se direcionou para um lado. Os óculos estavam mesmo pendurados num galho de uma árvore de gabiroba!
Quando chegaram em casa, estavam eufóricos! Se ele deixasse de dar aquelas aulas, deixaria de receber um dinheirinho que fazia diferença no orçamento. Deu uma gorjeta para o vidente, correu para tomar um banho, comeu rapidamente alguma coisa e depois de meia hora estava novamente no Gordini, com seus óculos fujões, indo rumo ao colégio, todo feliz da vida!
Aquele dia ficou marcado. Algum tempo depois encontrei com uma pessoa que conhecia a história, se pôs a comentar o fato que foi considerado a maior façanha naquele local em que nunca acontecia nada de extraordinário.

Ribeirões

Nossas diversões estavam muito ligadas à natureza e às atividades do sítio. Entre elas podemos citar as belezas do ribeirão Água Franca, cujo nome identificava nosso sítio. Ali a meninada fazia festa tomando banho e a transparência de suas águas permitia se ver lindas pedras de várias formas e cores na sua profundidade e os estimulava para fantásticos mergulhos. Outra coisa bem divertida era o monjolo que beneficiava os grãos produzidos ali mesmo, cujo plantio e colheita estavam sob a gerência do proprietário e chefe de família.
Os ribeirões que banhavam a região eram perenes, mas um deles, merece um destaque especial porquanto muitas de nossas experiências foram vividas ali. Cenários da nossa infância. Todas as manhãs e todas as tardes íamos lá, pegar a água para beber e cozinhar. E lá chegando, nos deleitávamos também mergulhando em suas águas e areias frias, onde brincávamos de escrever, desenhar e tantas outras brincadeiras daquele nosso pequeno mundo. Lembro-me, que em suas águas aprendi a nadar e era imensamente gostoso pular das ribanceiras, das ingazeiras em teus poços. Aventuras que davam prazer. Nele também eram lavadas as roupas de toda a família. O cenário era lindo, fosse verão ou inverno, pois em cada época do ano a silhueta contornava alegremente o pequeno vilarejo construído na sua margem. A brisa e a beleza de suas águas cristalinas, ainda moram em mim e hoje, depois de tantos anos, relembro o visual das tuas corredeiras nos lindos lajeados por onde passava e o frescor das águas banhando os nossos pés, quando íamos para o pomar. Nesse tempo nem sabíamos o que era poluição.
Ao pensar em ti, lembro de grandes amizades da infância quando sentados em tuas margens, conversávamos e admirávamos nossas imagens refletidas no espelho das suas águas. Ribeirão da minha infância e juventude sei que nunca vou lhe esquecer, porque foi um grande e mágico amigo. Suas águas me ensinaram que posso ser forte, doce e cristalina, mas para isso, às vezes precisamos passar por turbulências, escassez e escuridão, para só então, nos purificarmos e descobrirmos a essência da vida. Você era assim, primeiro passava por grandes dificuldades descendo as serras, contornando as pedras e abrindo o caminho. Nos dias chuvosos suas águas ficavam barrentas, de cor marrom. E você, meu lindo rio, ficava assim por vários dias, mas depois das primeiras enchentes, suas águas voltavam a serem puras, cristalinas e serenas. Aí, seu leito se transformava em berços para muitas espécies de vidas. De tão transparentes que eram a ponto de nos servir como espelho, uma vez, que nelas eram refletidas nossas imagens, o céu em sua grandeza e todo o mundo ao seu redor. Cada vez que penso em você, lembro-me das lições aprendidas em sua convivência porque foi e ainda é meu eterno amigo. E hoje, ao lhe ver afogado por uma grande represa, que em você fizeram, mas necessária, para armazenar suas águas e assim a população se prevenir contra o ataque das secas, não me sinto triste. Sei que lá ainda está alimentando a represa. Vendo-lhe na memória, me bate uma saudade de quando me agarrava a você para aprender a ser forte, ou me deitava em suas areias, à sombra das oiticicas me deleitava no meu reino de fantasias. Você jamais conseguia passar despercebido, pois era um oásis que cortava a caatinga. Hoje, você ainda existe, mas precisa muita sensibilidade na alma de cada ser, para enxergar esse majestoso riacho-rio que a represa afogou.
Já faz um tempinho! No entanto eu sou quase a mesma. Felizmente o que envelhece é a nossa vida. Podemos estar em um lugar onde anos duram apenas segundos, e depois muitas vidas abrem-se aos nossos olhos.
Em nossa vida conhecemos as estações e podemos atribuir que a PRIVAVERA é a estação do nosso nascimento, que explode em cores e perfumes. A vida é mais alegre e festiva. Tudo é alegria, esperança, novidade, otimismo e pureza.
Posteriormente, vem a inquieta juventude com o esplendor do VERÃO. É a estação do sol escaldante, plenitude de luz, cor, entusiasmo e empolgação, calor e beleza com a bênção das chuvas.
Em seguida, um olhar atento no espelho revela algumas rugas, fios brancos nos cabelos anunciam a chegada da maturidade e a visão é de um mundo abrangente sabendo que o OUTONO chegou! Visualizamos paisagens deslumbrantes, folhas douradas cobrem o chão formando um tapete natural, enquanto o céu se abre em lindas cores ao crepúsculo.
Por fim, o INVERNO, a mais surpreendente das estações, porque a maioria das pessoas tem receio da velhice. Mas nele temos muitas coisas que nos dão prazer, o enigmático encanto de paisagens cobertas de neve ou neblina, é uma época ideal para compartilhar experiências, podemos nos aquecer em frente da lareira na companhia de entes queridos, usufruindo da generosidade de filhos, netos, genros e noras.
Estes são nossos quatro Ciclos da Vida durante os quais desfrutamos com intensidade e sabedoria as nuances de cada estação. A vida tem seus encantos e, muitos mistérios insondáveis.
Tenho muitas lembranças. Lembranças coloridas, negras, brancas, cinzentas. Todas elas com suas significações. Podemos sentir saudades dos tempos bons sem fugir do presente.
A essas alturas, me surge uma pergunta:
_ Porque as pessoas escrevem?
Verdadeiramente ela me parecia ter difícil resposta, hoje, porém posso respondê-la com maior facilidade. Os escritores escrevem para criarem um mundo onde possam viver e/ou reviver. Muitos mundos são oferecidos, mas cada pessoa precisa criar o seu. Esta é a razão de toda Obra de Arte. Cada obra de arte é a encarnação do interior de seu próprio autor. Cada obra é sua visão compartilhada com os outros.
Quando escrevemos aprofundamos nosso conhecimento, atraímos, aprendemos, transcendemos, respiramos, encantamos e consolamos. Quando não desenvolvemos nossa arte reduzimos nosso universo e ficamos como que numa prisão e nossa chama deixa de brilhar. Desenvolver a arte é uma necessidade, é o nosso respirar literário.
Sinto-me agora transportada para uma realidade distante ainda assim percebo a grandeza do seu olhar na linha do horizonte. Tive em minhas mãos a maciez e o calor do seu corpo, mas fiquei apenas com as promessas. Você partiu. A duras penas fui conseguindo esquecer-lhe apesar de os ecos da sua voz tangerem meus ouvidos. Difícil viver sem sofrer, mas no compasso do tempo novos raios de sol têm me iluminado tirando nebulosidade do passado.
De todas as minhas lembranças, é dela que jamais esqueço: Minha Mãe, mulher sem limite, cujo tempo não tinha hora que não pudesse atender, luz que não apagava, soprasse o vento, desabasse a chuva, sempre presente estava com ternura e pensamentos puros. Você foi meu porto seguro.


 
Maria Loussa
Enviado por Maria Loussa em 05/10/2011
Reeditado em 06/10/2011
Código do texto: T3260122
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