Por um triz, não matei um assaltante

 

Quem mora em Brasília há mais tempo, deve se lembrar do Kazebre 13, um restaurante italiano que ficava na Avenida W/3 Sul, e era muito bem conceituado.

Costumávamos ir comer uma pizza, quando batia a fome. Estava sempre lotado. A comida era boa, o ambiente, acolhedor, e era o nosso ponto de encontro frequente.

Certa noite, depois do expediente, fui lá com uma amiga, colega de serviço. Tínhamos muito o que conversar, porque o nosso local de trabalho dava margem a muitas fofocas, e sempre nos divertíamos falando da vida alheia.

Era uma noite fria e, ao estacionarmos o carro, chegou um rapazola, embrulhado num casaco pesado, cinzento, oferecendo-se para vigiar. Respondi que não tínhamos dinheiro, íamos pagar com cheque, e que nos sentaríamos perto da janela, e nós mesmas veríamos o carro, de lá.

Durante o jantar, pude perceber o movimento do rapaz no estacionamento, e a sua figura, encolhida no frio invernal, me comoveu. Tinha sobrado um pedaço generoso da pizza, que eu pedi que fosse embalado para viagem. O garçom trouxe-o enrolado em papel alumínio, que eu cuidadosamente levei para fora.

Despedi-me da minha amiga, que morava em frente, do outro lado da avenida, e fui em direção ao carro, seguida de perto pelo rapaz.

Eu tinha um Maverick V-8, vermelho, com uma porta grande, pesada, que abri para embarcar. Nesse instante, entreguei ao moço a pizza, dizendo-lhe mais uma vez que não tinha dinheiro, mas não me esquecera dele. Já me sentava ao volante, com meio corpo ainda fora do carro, quando o moço que guardara a pizza no bolso do jaquetão, com a mesma mão sacou de um punhal, encostou a ponta no meu pescoço e sussurrou, quase que carinhosamente:

- Fica quietinha, que eu vou contigo, tá?. - e já se preparava para sentar-se atrás, puxando um pouco o banco com a mão livre.

O que o malandro não sabia era que eu treinava karatê diariamente, com um excelente professor, que nos preparava para essas situações, bombardeando-nos com instruções precisas.

Fiz uma análise rápida da situação e, com a agilidade conquistada no tatame, por força dos exercícios repetidos, desferi-lhe uma sucessão de golpes certeiros que o fizeram cair de costas ao chão.

Já saindo do carro, ia me lançar sobre ele, quando a visão ficou completamente preta. Eu fiquei cega, e o meu único intuito era matar o sujeito, acabar com o agressor que, tão ingratamente, tinha retribuído a minha gentileza. Acho que é uma sensação comum, nessas situações. Eu tinha ouvido dizer “Eu vi tudo preto, e não soube mais o que fazia.” Pude constatar a veracidade dessa afirmação.

O que salvou o pilantra foi ele ter conseguido levantar-se, no último instante, e empreendido fuga em carreira desabalada. Aí, já não o conseguiria acompanhar. Nem valia a pena...

Dirigindo de volta para casa, e tentando acalmar os nervos tensionados pelo incidente, felicitava-me pelo bom desfecho. Afinal, se o meliante tivesse conseguido me dominar e entrar no carro, só Deus sabe o que teria sido de mim.

Apenas uma coisa me incomodava: imaginar que o filho da mãe, depois de correr o suficiente para ficar em segurança, teria se sentado, e comido a pizza tão gostosa que eu, compadecida, lhe trouxera, e que ele guardou no bolso.

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Este texto faz parte do Exercício Criativo - Por um Triz
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Gy Emygdio
Enviado por Gy Emygdio em 21/11/2011
Reeditado em 24/12/2011
Código do texto: T3347902