CHASQUE A UM FORASTEIRO

Por aqui, nestes tempos de final de invernia, os campos já começam a saudar a estação das flores. Nem as geadas (que ainda se fazem sentir) conseguem inibir o nascimento dos primeiros brotos florais. Há um ritual de luminosidades em torno da gente e dos bichos, alumiando o levantar das pestanas do dia. Tudo é alumbramento, e ao olharmos o sol a menina dos olhos se encolhe fazendo a gente piscar várias vezes. O ser que comanda a vida nunca deixa que o ambiente seja repetitivo. O ciclo das estações está a nos mostrar que a natureza também tem seus cadinhos de humores. Tudo seria tão monótono se não tivéssemos estas mudanças climáticas. Enquanto isto, o homem não consegue conter os seus próprios humores e, subjugado aos interesses, fica interferindo sobre a Natureza com foices, paus e pedras como se ela fosse adúltera e vivêssemos o fundamentalismo bíblico. O crepúsculo começa mais tarde e as noites estão menos longas. Na rua onde moro, embretado na cidade grande, nesta aldeia provinciana da Cidade Baixa, coração de Porto Alegre, o point social dos jovens faz a sua algaravia, o bulício mágico da alegria e da festa, e dá uma vontade imensa de prosear com alguém. O monitor do computador é um olho cego que atura os rabiscos do pensamento. Muito bom quando a gente consegue criar laços afetivos. O homem não nasceu pra viver só, é um ser gregário, veio pra estar junto com os seus semelhantes, pra formar comunidades. Nós, rio-grandenses, somos hospitaleiros por natureza, gostamos de receber os forasteiros e os tratamos com o carinho peculiar dos que passaram longos anos muito solitários, como foi a ancestralidade de nossa gente. Isto parece que ficou agregado ao espírito do brasileiro nascido no Rio Grande de São Pedro. No alvorecer do Brasil meridional só havia campo, mato e longas distâncias a percorrer. Talvez por isso o berro do boi nos cala tão fundo! Talvez por isso, pelo atavismo n’alma, nossa música tenha esta mesma garganta de barro e pó e o gosto amargo da solidão. E é no inverno que tudo fica mais aparente. Este achegar-se de pessoa a pessoa concelebra-se no mate, no gesto de dar e receber com a mão em concha. Talvez tu não saibas, mas só no Rio Grande o mate passa de mão em mão. Na Argentina e no Uruguai se toma mate solito, principalmente nos galpões de estância. Desde muito cedo, o peão fica sorvendo o lusco-fusco, um olho na cambona e o outro na lida do dia. Naquelas bandas não é costumeiro se formar a “roda” para se sorver o “sangue da terra”. Se bem que nas cidades e no campo, entre as famílias platinas, aquerencia-se este costume, o mais tradicional do gaúcho sul-brasileiro. Este chasque lasqueado de saudade é o mate-chimarrão do reencontro, da celebração da vida, do quebra-costela amigo, aquele que mesmo doído, amassa a gente junto ao peito. Que não te esqueças do Rio Grande e de nós, que temos o cordão umbilical metido no campo, apesar de o tempo haver passado e convivamos com o progresso dos ares industriais e sequelas difíceis de serem conciliadas. Que os fletes do pensamento te façam centauro pra que voltes logo. Sei que sabes que estou com a cabeça moura e gosto de andar entropilhado. Setembro é um bom tempo pra tomar um mate e lambuzar os bigode!

– Do livro A BABA DAS VIVÊNCIAS, 2006/2013.

http://www.recantodasletras.com.br/cronicas/35913