No marques las horas

     
1. Se eu pudesse, tinha mil relógios! Desde o mais simples ao mais sofisticado. Um belo dia, sonhei comprando um Rolex. Mas foi só um sonho. Tive que me contentar com um Tissot comprado em duas prestações.
     
2. Aliás, é o segundo Tissot. O primeiro o ladrão levou num ousado assalto, num ônibus, tipo executivo, em que eu viajava, certo de que estava livre da ação dos meliantes. 
     Na hora do roubo, pensei: não adianta reagir. Vão-se os relógios, e a vida continua. Tive medo? Tive, sim. E daí?
     
3. Meu pai, no seu codicilo, deixou-me um relógio prateado marca Cima, de algibeira, com uma corrente que o tornava mais elegante. 

Isso foi há alguns lustres. Os relógios de bolso estavam na moda. 
     
4. Ainda cheguei a usá-lo.  Sentia-me como um coronel do fim do século 19. Até ensaiei comprar um picinez, com aros bem fininhos e delicados. Desisti. Seria, com certeza, alvo de chacota.
     
5. O tempo se encarregou de aposentá-lo. O relógio que o velho me deu  parou quando marcava meia-noite, não sei de que dia, mês e ano. Seus ponteiros, depois de tanto andar, parecem, hoje, adormecidos; vencidos pelo cansaço... 
     
6. Mas um relógio chegou a me incomodar, e muito: um relógio-despertador que pus na cabeceira de minha cama, para não perder a hora do bonde. Durante anos ele me acordou, com uma musiquinha muito chata; mas não tinha outra. 
     
7. E o mais lamentável: desoertou-me, algumas vezes, no exato momento em que o meu sono era acariciado por invejáveis e carinhosos sonhos... Ficava P da vida. Mas tinha que levartar e sair. 
     
8. Certa ocasião, tamanha foi minha iracúndia  ao ser por ele acordado que o joguei pela janela; resgatado, imediatamente, por minha governanta, que dele se apropriou, para minha completa alegria e eterna gratidão. Ah! Mas tive que comprar outro. 
     
9. E já que me dispus a escrever sobre relógios, deixo pro meu querido leitor estes versos, de 1920, do magnífico poeta baiano Aloysio de Carvalho, conhecido como Lulu Parola:

                    Dois relógios
          Sobre uma mesa doirada
          Dois relógios...Vinda e ida.
          Um, minúsculo - para entrada;
          Outro, enorme - para saída...

          Isto, porém, não é tudo...
          Outro sinal ainda havia:
          Este da entrada - era mudo;
          E o da saída - batia.

          Mas, eu, seu sou, sem favor,
          Amigo seu, com firmeza,
          Agora quando aí for,
          Mudo os relógios de mesa...

          Boto na entrada - que grita;
          E na saída - o calado;
          E assim, na minha visita,
          Já não serei avisado...

     
10. Vale lembrar aquele relógio que a gente suplica que "no marques las horas". E querem saber por quê? Porque "Ella se irá para simpre,/ cuando amanezca outra vez".

     Oh! El Reloj, o lindo bolero do Gatica! Eu o ouvia repetidas vezes quando, como dizia Drummond, eu tinha "a alma povoada de esperanças miríficas e sonhos maravilhosos".      11El Reloj, um bolero que não morre! -  "Detén el tiempo en tus manos/haz esta noche perpetua." Sem ligar pra sua idade, recorde-o comigo...

Nota: Escrevi esta crônica em Vitória do Espírito Santo - onde me encontro a passeio -, olhando para o belíssimo Convento da Penha.
     

     
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 22/04/2012
Reeditado em 24/09/2019
Código do texto: T3626892
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