219 - MEU ENCONTRO COM O BANDIDO
 
No fio das lembranças do poeta Toninhobira.




Desde que ele nascera tinha o estigma que o acompanharia para sempre.
Aquele “Boi da Cara Preta” chamava a atenção, era diferente no meio de extensa manada em uma grande fazenda. Ele era arredio, matreiro tinha uma cara de malvado como os bois das histórias em quadrinhos e dos filmes de desenho animado. Dava um trabalho danado a toda peãozada e vaqueiros que cuidavam do gado.
Por causa dele, mesmo no tempo em que ainda era “garrote,” o dono da fazenda precisou fazer um curral mais reforçado e pastos com mourões de dormentes adquiridos da ferrovia para evitar que ele levasse no peito a cerca dos pastos.

À medida que ele foi se tornando um animal adulto foi crescendo também a lista de escaramuças que ele dava em todos que tinham que lidar com ele, quando começava a cavar o chão com as patas dianteiras, quem estivesse por perto podia começar a se proteger. Era comum vaqueiro novato pedir as contas com medo de enfrentar o “boi da cara preta”.

 
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A fama daquele “bandido da cara preta”, como já o estavam chamando o precedia. O comprador de gado para abate da Cia. Vale do Rio Doce já havia dito muitas vezes que o traria sem, no entanto, lograr êxito, pois o dono sempre recusava vender o seu xodó. O fazendeiro somente resolveu vendê-lo quando o boi se tornou uma ameaça para a sua família que não tinha mais paz. Aquele danado criou fama.
Era um boi de grande porte, de cor preta, intensa, quase azulada. O nome “Boi da Cara Preta” era um eufemismo, maneira de distinguir o malvado já que ele era inteiramente monocromático. Preto como as asas da graúna. Enormes e pontiagudos chifres encimavam-lhe a cabeçorra.

Lembro-me bem que estávamos no final dos anos cinquenta e a figura daquele boi se assemelhava à figura do “Boi Gitano” que era personagem no filme “Sangue e Areia ou Arena Sangrenta” que passou no Cine Itabira e Cine Atlético.

Na época da venda ele veio em uma manada bem grande, depois de muita luta conseguiram colocar sessenta cabeças de gado em quatro vagões e despacharam para Itabira.

Na chegada do trem o boi já chegou babando e bufando com olhos vermelhos como se ele tivesse incorporado o espírito da “Maria Fumaça” resfolegante na subida de Governador Valadares até Itabira. O gado era descarregado na “Estação João Paulo Pinheiro”, no pátio de carregamento de minérios e sempre que a molecada sabia da chegada de uma partida de gado já havia um grande número de meninos protegidos por forte cerca, vendo os animais que estavam sendo descarregados os meninos ficavam aguardando para saírem correndo atrás da boiada. No nosso caso, como um ato inverso dos corredores de rua na cidade Pamplona na Itália. Eu tenho tanto medo de vaca brava que juro não entender como existem malucos que a qualquer santo pretexto resolvem correr diante do gado enfurecido.
Os vaqueiros encarregados de conduzir e levá-los até os pastos da “Chácara Minervino Bethônico”, devidamente aboletados nas suas belas montarias, o gado ficava em quarentena até a época que deveriam seguir para o abate.

Durante o trajeto pelas ruas do bairro Campestre os vaqueiros iam “tocando o gado” que, muitas vezes, saia correndo desembestadas pelas ruas. Eles chamavam de “arribada”, esta cena muito comum naquela época era um “salvem-se quem puder”.
Numa destas ocasiões eu ia, meio “que” distraído, como gostam de falar os jovens atualmente, estava carregando um balaio de pasteis, pudim de pão e doces de amendoim os “pés de moleque” que iria vender lá nas dependências da Cia. Vale do Rio Doce.
Ao descer um trecho da “Rua Jacutinga no Bairro Campestre”, no trecho entre a casa do Senhor Afonso Andrelino, pai do Sebastião, do Brás, Antônio, Ênio e outros e a casa do Senhor Sebastião Amaro e casa de Dona Taninha Ribeiro na Avenida Cauê, eu já estava quase chegando à esquina da rua e ouvindo louca gritaria da meninada, achava ou pensava que era uma turma jogando futebol no campinho de pelada que existia defronte o Isolado, hoje “Lar de Ozanan”.
Agora existe ali uma quadra, e o campinho foi transformado em um parque para as crianças brincarem e os aposentados ficarem “tomando a fresca”, que não é a cerveja, mas sim, a brisa da tarde e ficam ouvindo o piar dos Jacus, dos Papagaios, Maritacas e o grito dos Quatis e o guinchar dos pequenos Saguis, que habitam as matas do “Parque do Intelecto” numa algazarra vespertina anunciando que a tarde já se entrega a doce bruma do anoitecer e que o silencio da noite no meio da mata somente seria quebrado pelo piar das muitas corujas e do vôo intempestivo dos curiangos que faziam da mata sua morada.

Voltando ao assunto principal, ao deparar-me com um dos cavaleiros que ajudava a conduzir a boiada ele gritou: - Corra, sai fora que vem aí bicho bravo, referindo-se ao gado desembestado pelas ruas. Por uma fração de segundos fiquei meio aturdido, “ticei” o balaio fora e foi só pastel e pudim e doces voando no meio da poeira do minério que encobria as ruas do bairro que ainda não tinha nenhum tipo de calçamento. Quase não deu tempo de eu correr e tentar pular no poste de luz que era feito de trilhos soldados lado a lado.
Vi o gado dobrando a esquina, corri e saltei para agarrar-me ao poste, guindando o corpo para cima como se fosse um trapezista. Mal comecei a subir, senti uma chifrada de baixo para cima pegando-me literalmente de calças curtas de raspão na parte posterior da coxa e, sendo atirado para cima, agarrei-me nas barras transversais do poste puxando as pernas e tremendo como vara verde ao sabor do vento.
Fiquei encarapitado bastante tempo em cima do poste, como um gato que foge dos cães vadios das ruas, sem coragem de descer, embora não restasse nem mais a poeira do gado e dos vaqueiros que já tinham chegado ao destino.

Só dias depois eu fiquei sabendo que o boi que me chifrara era “o bandido boi da cara preta” e que lá em na cidade de origem ele fizera outras proezas, investira e quase arrancara o braço de um vaqueiro na tentativa de fugir do laço e pisou violentamente na cabeça de outra pessoa na área de apartar o gado. Durante muito tempo o couro do “bandido” ficou na parede esticado por varas e bambus curtindo para servir de tapete ou peça para arreio.
Mesmo assim, até hoje tenho medo danado de boi bravo ou de “tomar chifradas”.
Itabira-MG, outubro de 2010.


Uma homenagem aos valentes vaqueiros da
Cia. Vale do Rio Doce que à época cuidavam do Gado, do Matadouro existente na Chácara Minervino Bethônico e do Açougue do Armazém da Companhia Vale do Rio Doce - Sô Juquita, José Andrade Lage, Tãozinho, Tuca, Zito, Antônio da Pinta, Lécio, Nandico, Manoel, Zé Mugango, Sílvio Nogueira).
CLAUDIONOR PINHEIRO
Enviado por CLAUDIONOR PINHEIRO em 22/04/2012
Reeditado em 29/11/2014
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