O cego que tocava na Lapa

O sol do meio-dia salga o rosto do sanfoneiro cego. Ele abraça o instrumento e encosta-lhe o ouvido, sentindo a melodia. É um xote, é um xaxado, é um baião. É Luiz Gonzaga, é Jackson do Pandeiro, é João do Vale - puxados no fole pela mão de Israele, cego de nascença mas de ouvido atento; íntimo dos ritmos nordestinos.

O sanfoneiro e seus músicos fazem de palco o pequeno espaço em frente ao Mercado da Lapa, mas parece mesmo a proa de um navio lotado rumando de volta ao Nordeste, sem paradas e sem retorno. Mais gente embarca na pracinha; em todas as caras, os fortes traços de retirante.

“Toca Asa Branca ceguinho”. “Puxa uma toada , irmão”. “Agora aquela do Trio Mossoró”. Os pedidos da platéia falam alto ali, o público é respeitado e as lembranças aclaradas. A zabumba marca o ritmo do coração e o fole rasga dores passadas. Logo Israele está que é só suor . Ele puxa a toada saudosa, atentando ao pedido do moço de chapéu. A praça inteira se aquieta e o rapaz do pandeiro solta o canto:

“ Ó que estrada mais comprida/ Ó que légua tão tirana/ Ai se eu tivesse asas/ Inda hoje eu via Ana”.

No intervalo, o pandeiro roda e o dinheiro miúdo vai pingando das mãos, contribuindo pra colheita dos músicos. Gente se vai, gente chega. O movimento se refaz, renovam-se os pedidos. Israele faz uma pausa. Limpando o suor, ele comenta com um fã, na sua voz maneira, sobre suas andanças pelas ruas de São Paulo: “A gente cantava lá na Praça da Sé, mas vieram os fiscais e levaram o pandeiro e queriam a sanfona. Aí eu me abracei nela e disse pra eles: “Ela, vocês não levam não.Ela é o meu ganha pão”.

Do meio fio, sentado no seu quieto, Dona Maria, mãe de Israele acompanha a conversa e completa: “Eu mostrei estas mãos aqui ó, e falei pros fiscais: Aqui é mão calejada, não é mão de mulher a toa não. Eu suei pra conseguir comprar essa sanfona pro meu filho. Eles ficaram sem graça e só levaram o pandeiro, que eu abusei de procurar lá na Prefeitura, mas acabou sumindo”.

Enquanto Israele recomeça com a música, Dona Maria continua na prosa, falando das dificuldades de levar seu filho para tocar nas ruas e da perseguição dos fiscais: - “Êta gente ruim, meu Deus, não deixam nem a gente ganhar o nosso pão. Essa gente quer ainda ferir mais quem já ta tão machucado”.

Dona Maria fica um instante quieta, ouvindo a música que Israele retoma. Depois murmura: - “Não sei porque fazem isso, nós cantamos só o que o povo gosta”.