Passeios pela infância

Crianças brincam na rua, roubam a pressa dos meus passos e cantam em suas bocas as cantigas de minha saudade, correndo e gritando as distâncias que reencontro e se desfazem. Jogo de brinca esconde, pega-pega. Ela se esconde dentro de nós e prega sustos na idade que carregamos. Deságua em desejos como mulher grávida. Cada dia uma brincadeira, um brinquedo. Cada dia a mesma infância e novas vontades. Vontade de ser e, mal sabe que, já é a melhor fase da vida. Cantarolando parlendas adormeci em pé, olhos fixos, sem pressa nem passos. Brincadeira de estátua. Pedalei reminiscências cheias de barro nas mãos, aprendizados de chuva e bicicleta. Revisitei meus sete anos, desamassei a calça curta dos três e achei o mosquiteiro das inocências que me protegia do mundo e me desguarnecia, ao mesmo tempo. Cada casa que desfilava diante da imaginação: um dinossauro, um planeta desconhecido, um castelo digno de séculos de cumplicidade e reverências. Boa noite majestade. A princesa dos sonhos normalmente nasce na infância, na adolescência ela apenas se concretiza ou se desfaz. Viramos adultos. Majestoso o gosto de algodão doce, maravilhosa época onde a certeza de que a chuva é molhada nos basta. Areia desfazendo grandes desertos, construindo dunas para expor em nosso corpo a esperança, de grão em grão, eis a meninice. Cada criança com um taco de bétis nas mãos foi aos poucos jogando minha infância de volta para dentro dos olhos, com os pés na lua, na bola, no banco da praça aguardando a vez de entrar em quadra. Quadros dependurados ganham formas e cores que nem mesmo da Vinci poderia reproduzir. Creio que a inventividade de Dali era daí; da infância que insistia em emprestar suas mãos para desenhar originalidades. Crianças são originais, são quase as origens. Estão muito mais próximas de Deus porque vieram de lá faz pouco. “Um dia é como mil anos e mil anos como um dia”. Quadradas as formas da vitrine de doces. A maioria carrega doçuras. Sempre fui formiga. Hoje elas me ensinam tanto quanto as abelhas; falta-nos solidariedade. Falta-nos perfeição e essa é a graça da vida. O despertar das vontades é a presença do outro, ausências em nós. Infantilidades respeitam o riso, sabem de sua seriedade para ser feliz. O latido de um cão na casa ao lado quase me desperta por alguns segundos, quase sinto novamente o peso da pasta e do mundo. A hipnose é mais forte. O pequeno cão sempre foi grande companheiro. Todos deveriam ter um. Cutoco de nascença, sujava-me a calça de carinhos, lambia as conversas que não podia responder. Quer resposta maior? Meus pais o deram de presente para mim e meu irmão. O pai é sempre o maior do mundo nessa fase. Falo de pai, não apenas de quem cria. A mãe? O colo nas varandas tristes da vida. Só Deus sabe quantas nos aguardam. Infâncias ou tristezas? As duas. Mãe continua sendo uma só. Vendo os filhos carregarem o rosto da curiosidade e a cada duas palavras um: por quê? Para elas os filhos serão sempre pequenos, mesmo quando se assustam e descobrem, um dia, ao acaso de algum espelho, a maquiagem da existência, o telefonema da namorada ou ausência de vontades para ir com eles ao shopping, para viajar ou visitar a avó. Há pais que são mães e mães que acumulam função. Mesmo quando os netos lhe batem a porta, os filhos são sempre pequenos. Por quê? Por quê? A cada três porquês há um aprendizado ou mais. O que nunca nos damos conta, neste bilhete que a vida empresta, é que também ensinamos. Logo, voltar a infância é reaprender a ensinar. É reaprender a aprender. Poetas são residências de crianças. Eles sabem que sentimentos são os brinquedos mais delicados que elas carregam. E Serão sempre, mesmo para aqueles que as perdem. Perguntem aos psicólogos. A verdadeira infância não tem idade, nem datas marcadas para o retorno. Podem acontecer sempre. Vez em quando. Ou nunca, para os que as perdem. As nuvens em frente brincam de desenhar no céu, vejo um pequeno coelho sentado, um pássaro brinca com elas. Agora são pequenas ovelhas, como nós. Mudam de instante em instante. Nuvens têm parte com crianças, estão sempre brincando com ventos e adoram água. Algumas me convidam a ser astronauta. Quando isso acontece, escrevo ou sou escrito pelas emocionalidades. Inventar é dom de criança. Alguns ganham muita sanidade quando crescem, por isso envelhecem e perdem a capacidade de entender milagres. Sem barbantes, roda o pião dos segundos. O relógio que me carrega no pulso acusa compromissos com hora marcada e dinheiro em troca. Resolvo que meu compromisso nesse momento é com a infância e não há dinheiro que possa comprar ou devolver uma. Sempre tive curiosidades e vontades de ter uma ampulheta. Nunca comprei uma. Todos precisamos de alguns mistérios na vida. O mistério é que me prende aqui, a vontade de saber quem vai ganhar o jogo. Está doze a oito, a latinha titubeou três vezes, mais ainda não caiu. O menino do lado direito tem boa pontaria. O que está no taco é mais lento. Isso é o que menos importa. Até hoje não inventaram nada que substitua a infância. Conseguiram, quando muito, mudar os brinquedos. Alguns podem matá-la em troca da sobrevivência. Crianças vivem. Falam errado. Quem não erra? Ignorâncias destroem infâncias. Desconhecimento não é ignorância, é um estágio prévio do aprendizado. Não querer aprender, isso sim é ignorância. Falo apenas das coisas boas, não das idiotices. Quantos não aprenderam ou esqueceram o valor da vida? Os resultados povoam noticiários, enriquecem os comerciantes da morte. Estão mortos os que não aprenderam o valor da vida. Mortos fazendo outros mortos. Melhor que enriqueçam vendendo brinquedos do que mísseis. “Se quiseres adentrar ao Reino dos Céus deveis agir como uma criança”. Está no livro dos livros. Ou ainda: “Deixai vir a mim as criancinhas porque a elas pertence o Reino dos Céus”. Os tacos estão cruzados no centro e os meninos contam: dois, quatro, seis, oito, dez... enquanto o outro corre atrás da bolinha que vai a mais de duas quadras de distância. Uma tacada certeira, do menino que parecia tão lento e que por três vezes quase perdeu o taco. Ganhei junto com eles. A vida muitas vezes surpreende; assim como o menino. Cai no poço e o beijo tirou do escuro o velho João bobo das recordações. “Você comeu amora, vou contar pro seu pai que você namora”. Onde andará a primeira namoradinha cujos beijos vieram acompanhados de uma frondosa sombra de amoreira? O gosto rápido e diferente de quem quer crescer. E logo. Logo que vamos compreendendo queremos parar o relógio. Meninos e meninas são pilotos das horas vagas, dos carrinhos, das bonecas, das brincadeiras curiosas de médico, da vontade de ser bombeiro, professor, jogador profissional. Infância é profissão de sonhador. Onde estarão os velhos apelidos de quem jogava bolinha de gude ou vídeo games? Há duas fases na vida em que as horas vagas são sempre as mais cheias. A primeira de brincadeiras, de energia, de amigos. A segunda? Ainda sou muito jovem para brincar com ela. Quem sabe um dia ou uma noite ou uma madrugada. Como aquela em que lia gibis. Ainda tenho alguns. Em que queria ver as mulheres das revistas. Dias atrás fui surpreendido e surpreendi ao declarar que ainda gostava de gibis. Foi uma terapia. Não sem antes ser alfinetado por olhares, como que declarando, em voz imperativa de um silêncio esmagador: pessoas mais velhas não podem gostar de gibis! E não gostam. Mas as essências pueris que moram em nós, amam. O amor também é sinônimo de infância. Não é a toa que nominamos Deus como Pai, Cristo como irmão. E que seu Espírito é Santo. Ao comentarem o segredo da criação vem à baila o mesmo barro que as crianças adoram remexer. Começou a chover. Passos vagarosos me levam de volta para casa e ao serviço de todos os dias. Infelizmente, terei que trocar de roupa. Volto molhado de infâncias.

Ruberval Cunha
Enviado por Ruberval Cunha em 10/02/2007
Reeditado em 20/02/2007
Código do texto: T376958