O Tempo

Digo sempre que o tempo é encarregado de nos pregar surpresas e essas surpresas vêm, geralmente, mescladas de alegria, decepção, entusiasmo, lamentações etc.

Hoje, 16 de julho, usufruindo o meu primeiro dia de férias, deparo-me com algo insólito. No decorrer da narrativa vocês comprovarão.

Bem, o que me levou a escrever esta crônica hoje foi uma frase repleta de significados que ouvi de uma tia minha. Ela reside conosco há mais de trinta anos. Aqui em casa somos em quatro, eu, mamãe, minha filha e ela, minha tia, a protagonista de O Tempo. Seu nome de batismo é Maria José Leite Saldanha, vulgo Zuzu. Não sei explicar bem o porquê da alcunha, mas o fato é que ela foi praticamente abandonada pelo marido e filhos, e minha mãe, que é sua única irmã, resolveu adotá-la, posso assim dizer.

Os anos de convivência com minha tia, que não são poucos, são entremeados de muitas surpresas e uma delas, para mim a pior, é que minha ela começou a ter distúrbios mentais, chegando a ser internada várias vezes. Nessa época, a casa em que moramos atualmente era lotada de gente, porque meu avô, Valentim Antonio de Sousa, era dono de um coração imenso e passou a adotar muitas pessoas, tanto é verdade que quando alguém nos visitava perguntava se a casa era um hotel.

As primeiras pessoas a serem adotadas fomos nós, eu, minha mãe e meus irmãos, pois meu pai, que era filho do Valentim, nos largou sozinhos no mundo, e minha mãe, coitada, não tinha emprego, renda alguma. Mulher há algum tempo atrás, era difícil sobreviver sozinha. E a partir daí, passamos a morar com vovô e vovó. De quebra, minha mãe levou uma tia, aquela do início do texto, a Zuzu, que também havia sido abandonada pelo marido e pelos filhos. Sina triste a dessas duas irmãs.

Minha avó materna, Joaquina Pereira Dutra, esposa de Valentim, mais conhecida como Dona Sinhá, parecia de origem alemã, alta, cabelos e olhos claros, um porte majestático, bonita de se ver, era ela quem convencia meu avô a adotar as pessoas. Acho que fazia isso porque, além de um coração bom, só tinha um filho e ele nem dava muita bola para ela.

Sinhá, minha vó, e minha tia, a Zuzu, ora e outra estavam sempre de conversa. Tornaram-se grandes amigas. No fundo, titia se incomodava de estar ocupando mais um espaço naquela casa e quando ela exteriorizava isso, com palavras de acanhamento, meu avô tratava logo de consertar: - Que nada, Zuzu, minha casa é que nem coração de mãe, sempre cabe mais um.

E assim minha tia ia passando o tempo. No entanto, esse mesmo tempo não se encarregou de apagar suas decepções familiares, travando e massacrando, aos poucos, sua mente. Daí por diante, foram só internações, doenças, aflições, e minha mãe, que era tutora, suportara tudo com a maior calma possível.

Agora, para chegar de fato, ao motivo que me levou a escrever esta crônica, terei que dar um salto no tempo e, finalmente, fincar os pés no ano de dois mil e doze, 16 de julho, 10h30min, ainda na mesma casa, pois a herdamos do nosso avó. Casa essa que sofreu algumas modificações após a morte deles. Os quartos, que pareciam de hotéis, deram lugar a outra casa, a da minha irmã. Mas isso não vem ao caso agora.

Pois bem, minha tia, a inspiradora desse escrito, apesar de tantas agruras, hoje convive amigavelmente com seus 85 anos. Lúcida, mas um pouco combalida, transformou-se em criança novamente, estado esse que todo ser humano, que irá morrer de velhice, passará. Para ela, damos carinho e cuidados redobrados. Para nos ajudar nessa lida, temos em casa a Toinha, nossa secretária, que cuida de sua higiene pessoal, refeições, lanches etc. De manhã, ela dar banho, café e depois, antes de levá-la para o quarto, coloca-a no sofá para contemplar outra paisagem, a da sala de estar. Quando não está no quarto, está na sala. Ali ela fica sentadinha, quietinha, absorta em seus pensamentos. Apenas nos escuta, quase não fala. Só quando o meu sobrinho Gustavo de um ano e meio vem nos visitar é que ela diz com a voz ralinha e trêmula: - Ele parece um santinho.

E estávamos hoje nessa rotina normal, tia Zuzu na sala e eu no quarto. A sala fica perto do quarto onde durmo. E lá eu me encontrava, sentada no chão do meu cômodo folheando alguns livros, quando minha tia, a Belinha (84 anos - todo dia nos visita), põe a cara na porta e pergunta se eu posso colocar um CD para ela ouvir, pois o aparelho da sua casa estava com problemas. Ergui a cabeça dos livros e prontamente atendi seu pedido, disse que podia ouvi-lo, sem problemas. Coloquei-a em minha rede e ali ela ficou, se embalando para lá e para cá, ouvindo suas músicas prediletas, The Fevers, Fernando Mendes, José Augusto, Jerry Adriani, e quando chegou a vez de Elis Regina, com a música FASCINAÇÃO, ouvi do meu quarto minha tia Zuzu, lá na sala, dar um grande e profundo suspiro e culminar com um emocionado choro. Corri até ela, deixei os livros jogados no chão e quando me aproximei, percebi que ela estava realmente comovida, chorando baixinho. Então perguntei - nessas alturas eu também já estava aos prantos - o que havia acontecido, qual era o motivo de tal lamento, e ela me responde: EU ESTOU PENALIZADA COM O TEMPO. Frase forte essa. Muito forte.

Confesso que há muitos anos não via titia Zuzu chorar. Meu coração partiu-se em mil pedaços. Sou boba, me emociono com facilidade. E ali ficamos, eu passando a mão pelos seus cabelos branquinhos, aliando-me a ela nas lágrimas e também consolando-a, contemplando aquele jeitinho dela tão frágil, tão carente, seus olhinhos tão enrugados, sua pele com vincos densos, seu jeitinho tão manso e indefeso. Estávamos absorvidas naquele momento de pura emoção, ao som de Fascinação quando, de repente, somos despertadas pela voz da minha mãe, quase num tom revoltoso, vindo de outra sala, que dizia: O TEMPO ACABA COM TUDO.

O resto é com vocês, leitores, tirem suas lições, reflexões e conclusões sobre o TEMPO.

Elian Maria Bantim Sousa

Elian Bantim
Enviado por Elian Bantim em 16/07/2012
Reeditado em 02/08/2012
Código do texto: T3781431
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