FORMATAÇÃO

FORMATAÇÃO

A manhã está particularmente quente, num outono que ainda teima em dar a si, ares de verão. O engarrafamento, comum nesta cidade que cresceu sem perceber, começa a fazer efeito sobre o humor das pessoas. Rostos, apenas rostos que se alinham lado a lado, nos espaços reduzidos, e não se olham, não se enxergam, não interagem. Cada rosto é uma pequena ilha, perdida na imensidão dos próprios pensamentos. A senhora com as sacolas resmunga contrariada a cada freada. A moça, de blazer nesse calor infernal, olha o relógio a cada minuto, certamente ciente de que deveria estar no emprego há meia hora. O garoto do colégio, por sua vez, não parece muito contrariado com a perda da primeira aula. Grita a todo instante, divertindo-se com os colegas que estão no fundo do veículo. No ônibus, que percorre um quilômetro por hora, só há dois caminhos, o stress ou a abstração. Escolho a segunda alternativa.

Observo a equipe de jardinagem trabalhando no canteiro central da avenida. Aparam os arbustos, domando-lhes os galhos, fazendo com que tomem sempre a mesma forma. Desenhos geométricos vão preenchendo todo o canteiro, fazendo com que o verde não destoe das linhas protocolares da paisagem urbana.

Formatação. Penso. É incrível como formatam até as plantas!

“Escapou a formatação”, ecoa em minha mente, uma voz muito querida, com palavras pronunciadas num contexto diferente, mas nem tanto. Formatam-se plantas, formatam-se coisas, e o pior, formatam-se pessoas. Sim. Nessa ânsia de padronizar, de determinar o certo e o errado, formatam-se indivíduos, a despeito de suas convicções, vontades e sentimentos.

Sentimentos não deveriam ser formatados. Ao menos não todos. Algumas coisas devem ser ditas e sentidas, sem formatação, sob pena de se perder todo o encanto de seu significado.

Não gosto de jardins geométricos, certinhos. Não que sejam feios. Tem até sua graça. Possuem uma beleza contida, cuidadosamente padronizada, forjada. Mas, a exemplo também das pessoas, prefiro a alegria libertária dos bosques, onde as árvores crescem sem amarras, cada qual seguindo seu rumo, obedecendo somente à própria natureza.

Segue o ônibus pela avenida abarrotada. Sigo eu, em minha fuga constante da tesoura e do prumo. Numa decisão intransigente de, sob muitos aspectos, permanecer bosque.

Luciana Rodrigues – 17/05/2006

Luciana Rodrigues
Enviado por Luciana Rodrigues em 12/03/2007
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