No milharal da inefabilidade

Morri. Estou no Céu. Meu nome é Salustiano. Nasci na cidade do Alegrete no Rio Grande do Sul na primeira metade do século passado. Fui peão de estância quase toda a minha vida. Casamento e família, tudo bem... mas sempre no aperto. Trago na memória nossos momentos agradáveis e alegres à mesa na hora das refeições. Muitas risadas.

Lá pelo final da minha vida, cheguei ao topo da carreira, consegui um emprego de capataz e por lá fiquei. Consegui, finalmente – bem no final mesmo –, comprar uma terra onde plantei um milharal. Quando comecei a desfrutar, a vida se acabou... A família, a terra e o milharal ficaram para atrás... Vida de pobre é assim mesmo... Meu consolo, agora, olhando a vida que vivi, percebo que meus bons momentos e alegrias não dependeram do dinheiro.

Não me perguntem como é que eu passei pela porta estreita... Só na misericórdia divina... Afinal, a vida eterna é o prêmio máximo da vida honesta e responsável e eu já estou aqui, depois de muitos quilômetros andados e tropeços, trancos e barrancos, decepções e superações... Ah! Olha quem vem lá! O Abraão! O Pai de vocês na fé. Agora eu trato-o como meu colega porque por aqui tudo acontece na visão... Fé, só aí embaixo.

Se eu disser que morri há muito tempo, estarei usando essa linguagem limitada de vocês aí... Por aqui, essa noção não existe: o esquema é outro! Na verdade, não existe nem o “aqui”... Já consegui dar uma bela desbravada pela redondeza... É difícil explicar porque tudo é inefável... A inefabilidade é tanta que para movimentar-me preciso abrir espaço com as mãos como naqueles velhos tempos em que caminhava no meio do meu milharal. Ah! Que saudades! Posso constatar que “estou nessa dimensão completamente nova”, se posso me expressar assim... É quase bem isso – o “milharal da inefabilidade”!

“Inefabilidade” é a palavra que eu tive de aprender – pobre de mim, homem rural – para autocompreender-me e dizer para vocês que estou justamente onde a palavra não alcança... Nesta nossa nova situação, ela não agarra nada... Nem tentamos... Por isso, Che, onde estou, carrego embaixo do braço um dicionário para tentar me comunicar com vocês pelo menos com umas palavras difíceis, mais aproximativas... Talvez por aí consiga alguma coisa...

Contextualmente, somos muitos. O senso de comunidade entre nós é muito forte! Quando o Senhor da Luz passa perto de nós a sensação é maravilhosa! Bah! Até o milharal fica alegre! De qualquer forma, nossa situação já é incomparavelmente melhor do que o humanamente imaginável mais excelente do mundo histórico espaço-temporal de vocês aí embaixo.

Mas bah, olha quem está aqui do meu lado! O Davi! O rei Davi da bíblia... A empatia da conversa veio a galope:

- Che Davi, tu não imaginas que honra poder me encontrar contigo nessa situação amorosa e gloriosa! Sempre tive uma pergunta para te fazer... Como conseguiste ganhar do gigante filisteu Golias naquele combate com uma simples funda?! (1 Sm 17,32-51)

- Foi paradoxal! Como nessa situação em que vivemos. Pura graça divina! Revelou a força da confiança em Deus naquele mundo histórico; seu domínio completo sobre todas as situações humanas.

Bah... com essa, abri o dicionário: “paradoxal”, quer dizer, situação que contradiz uma intuição lógica.

- Davi, tu chegaste a ser rei e eu, capataz! Estou tentando explicar para eles esse nosso reino-milharal, mas não está fácil... Até a próxima!

Ah! Chega de utilizar esse meio rudimentar de inspirar palavras a este escritor para tentar comunicar-me com vocês... Nesse mundo inefável e paradoxal em que me encontro, o melhor mesmo é o nível onírico (Che, o que seria de mim sem esse dicionário...). Acho que eu vou dar uma de anjo e aparecer para vocês em sonho... É melhor! Se depois de caírem no sono, vocês enxergarem um milharal reluzente e alegre – não se assustem, se preparem – sou eu que estou chegando!

Miguel Wetternick
Enviado por Miguel Wetternick em 22/01/2014
Reeditado em 05/08/2014
Código do texto: T4660175
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