Quando se sente o coração

Apresentou-se na conversa com o médico por telefone e disse:

- Doutor José, sinto o meu coração.

É sacerdote e chama-se Rafael. Carinhosamente, Padre Rafael. Já conhecia o cardiologista; lembrava de duas conversas agradáveis que ocorreram na “Praça de Alimentação” da Igreja Nossa Senhora do Rosário e São Benedito no centro de Cuiabá, capital do Mato Grosso. Jantavam o prato típico conhecido como “Maria Isabel”. Por admiração, o Doutor já o havia presenteado com duas camisas de linho.

Um pouco antes da Missa da Vigília Pascal, Pe. Rafael, ao acertar os detalhes desta celebração litúrgica – a mais longa e solene do ano –, ouviu essa do músico Carlos Eduardo que veio espontânea e direta:

- Padre, na noite passada eu sonhei que o senhor havia morrido e nós o velávamos... O senhor estava ali estendido naquele caixão...

O padre não chegou a tremer na base, mas lembrou-se, de imediato, do médico, pois já vinha “sentindo o coração” havia algum tempo... Lenta, gradual e sucessivamente. Artistas, normalmente, têm maior sensibilidade... podendo chegar a premonições... E se ele estivesse certo?! Sonhar com o padre?! Com tantas coisas bonitas na natureza, na vida, no casamento e na arte para poder sonhar... Logo com o coitado, enquadrado no fim da linha dessa forma tão pouco estética...

Seu pai – é verdade – havia morrido uns dez anos antes de “obstrução coronária parcial generalizada”. E a genética é o prazo de validade que vem marcado na embalagem do produto biológico de forma irrevogável, intransponível e inadiável, passando de geração em geração. Ainda que ele falasse várias vezes em suas homilias – e justamente nessa Missa da Vigília da Páscoa – as palavras de Jesus “Eu sou a ressurreição e a vida! Aquele que crer em mim, ainda que esteja morto viverá e quem vive e crê em mim não morrerá jamais”, a “morte para daqui a pouco” altera de forma súbita os planos de tudo...

Os componentes estavam todos aí... Todos de peso suficiente para levá-lo ao telefone. Respondeu o médico:

- Apareça na Terça, 22 de abril, pois 21 é feriado.

“Sentir o coração como um corpo novo e estranho” talvez seja um problema não alcançado pelo eletrocardiograma... Viver nesse “mundo sem coração” – olhem para os contingentes de europeus que esperam no patíbulo da forca neoliberal – desaloja os sentimentos de qualquer um nessa ganância, funcionalidade, pragmatismo, frieza e acomodação sem solução irrespiráveis!

E a ex-colônia Brasil, quando será atingida?! Passa o tempo e ela não progride... Recursos das repartições públicas são desviados para o certame eleitoral, sucateando-as. Políticos e governantes responsáveis pelas tramoias se escondem atrás das assinaturas de subalternos que poderão um dia ser presos por uma operação da Polícia Federal. A Copa do Mundo de futebol, já às portas, é um entorpecente alienante e desmobilizador que pouco ajuda...

O coração, portanto, está ali – em sua casa biológica, protegido pelo mediastino, pulsando no tórax e mandando sangue oxigenado para todos os lados –, sentindo-se, no entanto, cronicamente, como um corpo estranho... Sentir para quê? Para sofrer?! Qual o futuro?! Doutor, dá para viver assim a saúde – uma harmonia biológica?! Faça alguma coisa... Quando o meu coração viverá de novo involuntária e silenciosamente?! Quando estarei bem novamente?!

Miguel Wetternick
Enviado por Miguel Wetternick em 20/04/2014
Reeditado em 05/08/2014
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