Eu não perdoarei...


     E eis que, tendo Deus descançado no sétimo dia, os poetas continuaram a obra da Criação.
                                Mario Quintana



          Em uma de minhas crônicas mais recentes, acho que falando sobre o dia das mães, lamentei não ter nascido poeta. E, num rasgo de sincera ousadia, disse não perdoar o Criador por Ele me não ter agraciado com tão divino dom.
          Repito: bem que gostaria de saber versejar. Olha, a única vez que me atrevi a fazer versos, foi um monstruoso fracasso. E naquele já tão distante momento, prometi: nunca mais !
          Não adianta insistir: só é poeta quem nasce poeta. Nascuntur poetae, já diziam os romanos. Assunte só: uma coisa é escrever inspirados versos; outra coisa é fabricá-los, valendo-se de palavras buscadas nos dicionários e não saídas do coração.
          Dito isso, quero deixar claro que aquela minha atrevida afirmação de não perdoar Deus porque não me fizera poeta, continua de pé. E Ele haverá de me compreender, absolvendo-me se, assim me comportando, pequei.
          Creio que o Altíssimo não fica de mal ou agastado quando um dos seus filhos, com a mais pura sinceridade, não O perdoa por não ter merecido algo que só Ele poderia conceder; o dom de ser poeta, por exemplo.
          Alguns amigos, boquiabertos, fizeram reparos à minha destemida declaração de não perdoar o Senhor. Como? Dizer que não perdoa Deus porque lhe não fizera um poeta? Isso é um absurdo, foi o que cheguei a ouvir.
          Diria que me deliciei com a conclusão a que esses queridos amigos chegaram ao examinarem a minha aparente rebeldia contra o Criador, o senhor absoluto do nosso destino. 
          Ele é um ímpio, um blasfemo, um herege, podem até ter pensado. Enganam-se todos. Aprendi, desde muito cedo, a amar a Deus, mas sem fingimento. 
          E já que estamos falando de Deus, poetas e poesia, veio-me à lembrança estes versos, de Casimiro de Abreu, que um dia ouvi de minha mãe.
                    DEUS

     Eu me lembro! Eu me lembro! - Era pequeno
     E brincava na praia; o mar bramia
     E erguendo o dorso altivo, sacudia
     A branca escuma para o céu sereno.

     E eu disse a minha mãe nesse momento:
     "Que dura orquestra! Que furor insano!
     Que pode haver maior que o oceano,
     Ou que seja mais forte do que o vento?"

     Minha mãe a sorrir olhou pros céus
     E respondeu: -  "Um ser que nós não vemos
     É maior do que o mar que nós tememos,
     Mais forte que o tufão! meu filho, é - Deus!"

          Aqui em Salvador tem uma pequena igreja que está entre as de minha preferência, e sobre ela escrevi, lembrando a Sé de Palha, a Sé Primaz do Brasil.
          Nessa igrejinha, consagrada a Nossa Senhora da Ajuda, está, felizmente mui bem cuidado, o púlpíto usado pelo Padre Antonio Vieira para pronunciar muitos dos seus inteligentes, corruscantes e belíssimos sermões.
          No "Sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra a Holanda", pregado na Ajuda, o jesuíta, inconformado com com a decisão divina de auxiliar as tropas holandesas, foi incisivo: "Ainda que nós somos os pecadores, Deus meu, vós haveis de ser hoje o arrependido."
          Pelo seu veemente e corajoso pronunciamento - ..."vós haveis de ser hoje o arrependido"... - feito nos idos de 1640, ao fiel seguidor de Inácio de Loyola nada aconteceu e censurado foi pelo seu sermão. Nessa onda de canonizações fáceis, de repente ele vira santo.
          Que eu tenha a mesma sorte de Vieira, e, como ele, seja entendido, nessa minha iracundia inofensiva. Que Deus de mim se apiede e não se zangue porque eu disse não perdoá-Lo por não me ter feito poeta.


                             




 
Felipe Jucá
Enviado por Felipe Jucá em 14/05/2014
Reeditado em 10/01/2020
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