Não levo a vida, deixo ela me levar!

Dizem que de poeta e louco cada um tem um pouco. Acho que desde pequeno, quando não tinha nada de poeta, eu já era louco, no bom sentido, é claro! Era eu uma espécie de Marcelino Pão e Vinho, personagem de uma história que poucos hoje conhecem, mas no meu tempo ainda de criança o filme lotava sessões e provocava enormes filas às portas dos cinemas.

Marcelino, um pequeno órfão que causa milagre. Quando bebê foi deixado na porta de um mosteiro e criado muito bem cuidado pelos monges, mas sente falta de ter uma mãe. Um dia encontra um amigo especial em sótão proibido, pendurado em uma cruz. Um amigo que retribui a bondade da criança, concedendo-lhe um desejo do fundo de seu coração. Marcelino deseja ter um amigo para brincar, com a personalidade dele, e o ganhou invisível e habitando a sua mente, que tinha todo o espaço de um jardim, onde brincava só aos olhos humanos, mas a dois aos olhos que vêem através de outros corpos!

Eu e Marcelino podíamos ter nascido em qualquer lugar do mundo, pois na movimentada linha de produção de bebês não há como determinar a alma de cada criança a nascer. São muitos exemplares e parece que poucas as cegonhas; elas têm que viajar com rapidez, vasculhando quarto de motéis, terrenos baldios, moitas das florestas, quartos de casas pobres e ricas, e até o escurinho do cinema, para entregar para cada par ou casal o bebê desejado ou indesejado, e ela tem que ser tão rápida que não dê tempo para que a vejam e passem a acreditar no que estou falando. Ao contrário do que pensam, a cegonha não traz o bebê completo e já chorando pendurado em um lençol, traz-nos dele apenas a alma e a personalidade!

Foi no meu tempo de criança que começaram a estudar cientificamente o autismo, há 60 anos, que dizem ser uma desordem na qual uma criança jovem não pode desenvolver relações sociais normais, se comporta de modo compulsivo e ritualista. Terei sido, ou sou, autista, já que não desenvolvo relações sociais normais? Não vou ao clube pelas manhãs jogar pelada; não saio à noite para sentar em um botequim e sair de lá com bafo de saca-rolha; não compro “Playboy”; não fumo em restaurantes e em nenhum outro lugar, preferindo gastar meu suado dinheiro em guloseimas para meus filhos; adoro mulheres de todos os gênios, tipos, estaturas, raças e profissões, mas só escolhi uma delas para ser a minha boa metade. Sou diferente, não sou convencional!

Poucos são compulsivos como eu, principalmente quando se trata de meus direitos, quando falo alto e em bom som, às vezes sou mal entendido e me dou mal, mas o que fazer se sou assim e não abro mão? Sou ritualista, agradeço a Deus a qualquer hora e em qualquer lugar, jogo minhas calças, camisas, meias e cuecas espalhadas pelo chão do quarto como um ritual que vai ser difícil mudar na minha idade. O único local que arrumo é o meu espaço de trabalho, o que o faço ritualmente de seis em seis meses, ou quando necessito achar um papel perdido entre a montanha de outros que já deveriam ter sido destinados à reciclagem. Não dou bom-dia a quem não gosto e vivo a sorrir para os que me são simpáticos. Isso é autismo?

Não só Gabriel que nasceu em 1993 em Macaé, litoral do Rio de Janeiro, cujo pai presta homenagem em uma página que criou na internet, pena que desatualizada, Canto de Anjo, em que ele narra que aos três anos após terem recebido por dádiva de Deus o anjo Gabriel ele percebeu que o filho reagia em não falar, mas só cantar adotando um comportamento aéreo.

Que nenhum avião Legacy derrube nossos pensamentos e sonhos aéreos, pois melhor é ver a vida pelo alto, e que ninguém nos impeça de cantar ao som das harpas tocadas pelos anjos ou ao batuque do pandeiro, do ronco da cuíca ou de um dedilhar ao violão. Quer melhor do que cantar? Afinal, como diz Zeca Pagodinho: “E deixa a vida me levar, vida leva eu (...) Sou feliz e agradeço por tudo que Deus me deu...”