Para Amélia
Se eu pudesse, mãe, te pegaria no colo, te ensinaria a andar sozinha, te levaria ao parque para comer algodão-doce e pipoca, para tirar fotos no lambe-lambe. Seu eu pudesse, mãe, seguiria os teus passos como um anjo da guarda, para que não tropeçasses mais nas subidas e descidas da vidam. Se eu pudesse, mãe, ficaria acordada a noite inteira vigiando o teu sono e a tua respiração, te mostraria a beleza das manhãs.
   Pegaria a tua mão, para que pudesses admirar o entardecer; aquele momento magnífico em que a noite ainda não chegou, mas está próxima. Em calma, te diria, nesse momento grave e pleno da tua vida, que as rugas no rosto vão desenhando a minha e a tua história, que as quedas te fizeram maior diante de meus olhos, que, apesar dos teus 85 anos, continuas inteira, com a mente que brinca, que afaga, que brilha e que está mais ativa do que nunca.
   Se eu pudesse, te daria a vida eterna, porque as mães deveriam ser imortais. Falaria, baixinho, em segredo, que teu corpo envelhecido guarda a minha herança maior. Mas tem horas, mãe, que eu me enfureço, tenho raiva das tuas limitações, da velhice que vem me afrontando, me dizendo coisas que eu não queria nem ver. Então, me angústio, me sinto impotente diante do corpo que se esvai, que tropeça, que hesita, que falha e que insiste em revelar os teus 85 anos.
   Tem horas que eu viro a tua mãe, que descabelo, xingo, falo que não pode, que não dá para ser do mesmo jeito que antes. Tem horas que eu fico brava diante do inexorável, que tento cercear a tua liberdade, a tua indepedência e autoconfiância. Tem horas que eu dou ordens, estabeleço parâmetros, digo que não pode mais sair sozinha — onde estão os teus cinco filhos? Com paciência, tu me respondes: "Todos tem a própria vida e não podem ficar à minha disposição. Você quer que eu fique deitada na cama, trancada dentro de casa, esperando a morte chegar?"
   Nesse momento, retomas o rumo da tua vida e me dizes que sou tua filha, que me criaste, que ensinaste a andar sozinha, a caminhar com as minhas próprias pernas. Mas tem horas, mãe, que eu te enxergo velhinha, a precisar de ajuda, a gritar por socorro. Se eu pudesse, mãe, faria tudo para realizar os teus sonhos.
   Compraria agora mesmo uma passagem para a Itália, para que pudesses cumprir o roteiro sagrado de Assis, onde nasceu São Francisco. Depois, a viagem  a Turim, para visitar a igreja e a obra de Dom Bosco. Se eu pudesse, mãe, ficaria horas no Vaticano, em Roma, esperando um simples aceno do Papa, só para te ver feliz. Seguiria, então, para Veneza e, na Praça São Marcos, pediria ao maestro para tocar as Quatro Estações, de Vivaldi, só para te encantar. Passearia de gôndola, sob a Ponte dos Suspiros e, por incrível que pareça, alimentaria os pombos. Depois te levaria para a peregrinação maior ao caminho de Santiago de Compostella, na Espanha, e chegaria em Fátima, em Portugal. Quem sabe, mãe, os três pastores me contariam os segregos da humanidade?
   Mas as mães também envelhecem e dizem abertamente, sem constrangimentos, que alguns sonhos se perderam pelo caminho. E que, hoje, o maior desejo é ver os filh9s vivendo em paz, harmoniosamente, que acordar a cada dia é lucro, uma benção, um verdadeiro privilégio, pois, às vezes, as noites são longas demais para quem viveu tantos dias, que é hora de dormir, de descansar, que a viagem está chegando ao fim.
   Se eu pudesse, mãe, tiraria o peso dos teus ombros, a solidão dos teus 85 anos, os ossos que rangem e que gelam no inverno, que gritam no verão, que passam toda a primavera em pânico e que, no outono, desfolham.
   Tem horas, mãe, que tu viras uma criança e penso que vou te levar para morar comigo. Vou fazer comida, te abrigar, te afagar, te acalentar, mas olhas para mim com condescendência e dizes: "Não moro com filho nenhum. Se qualquer um precisar, venha morar comigo, mas eu quero ter a minha casa". Então, voltas a ficar poderosa, apesar dos teus 85 anos. Entendo a soberaria das tuas rugas. Na tua casa de rainha, és rainha, tomas posse dos teus móveis, das tuas lembranças, da tua dor, dos teus limites, das tuas fotos, panelas e manias. És dona do teu espaço, da tua dignidade de envelhecer, sem que os filhos te coloquem à margem da tua própria história, num lugar que não é teu, pois precisas viver o teu próprio crepúsculo.

                                           Déa Januzzi
                        (Jornalista e escritora)


Editora Leitura, Belo Horizonte, 2003
Coração de Mãe, página 51,52,53
Déa Januzzi
Enviado por RG em 18/09/2014
Reeditado em 18/09/2014
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