A visão do Centro do Rio, numa lanchonete do KFC

O Centro do Rio de Janeiro é algo pitoresco. Sempre que percorri por ele por conta dos meus afazeres, sem parar para observar os pequenos detalhes, nada percebia. Achava algo bem simplório, cotidiano. Contudo, quando fui aos outros grandes centros urbanos (como Salvador, Recife, São Paulo e Belo Horizonte), senti tanta diferença que parei para me ater mais ao centro da minha cidade.

Somente percorria, mas não conhecia de fato. Talvez pela correria, pela falta de sensibilidade ou mesmo por ignorância pessoal em não reconhecer os traços característicos do centro do Rio.

A primeira ação que tive, no alto do KFC, foi ver, da janela do segundo andar, as pessoas andando na calçada da Rua São José.

Estava esperando o meu amor.

Comecei a me atentar em alguns detalhes.

Algumas pessoas, freneticamente, iam despachar documentos, caminhar a uma reunião de forma apressada ou dirigir-se ao fórum para as audiências ou verificação de processos. Ou mesmo, passarem aos escritórios. Uns retornariam aos seus locais de trabalho. Outros, por sua vez, despreocupados, conversavam com os seus pares. Vi vários casais de namorados, alheios aos que estavam à sua volta. Aliás, presenciei muitas coisas peculiares, feitas pelos centenas e milhares de transeuntes da São José.

Talvez a minha crônica se revista de alguns vícios.

Vícios de quem se encontra condicionado a omitir opiniões comuns. Ou, ao menos, "reflexiva", naquela idéia pragmática do "toma lá, dá cá" ou "Matheus, primeiro o meu" ou "farinha pouca, o meu pirão primeiro".

Hoje quero fugir desse "sensismo comum" e tentar ser eu.

Observando um pouco a movimentação das pessoas no Centro, entre trôpegos, apressados e vagarosos, percebi a futilidade e, ao mesmo tempo, a riqueza que a vida pode possuir.

Entre o trabalho, o caminhar atarefado ou descompromissado, existem vidas, com carências, emoções bem ou mal-resolvidas. Visões díspares de mundo. Particularidades ou segredos que só mesmo um Ente sobrenatural (isto é, Deus) só pode mensurar.

São homens, mulheres, idosos e crianças; adultos e jovens com anseios, entre os desejos consumistas e, simultaneamente, os vazios emocionais que perseguem a sua alma.

São tão iguais aos que andam diariamente nos centros de São Paulo, de Belo Horizonte, de Salvador e de Recife.

Continuando, ao olhar as diversas pessoas, transitando por um lado ou outro, fiquei com uma forte instrospecção. Oscilei entre sentimentos de perplexidade, resignação, raiva e consternação, pelas coisas que eu vi.

Não conseguia, ainda que intelectivamente, compreender o porquê do grau de "democraticidade" das ruas cariocas e a "harmonia" das classes sociais no espaço público - de dar inveja a qualquer lugar dito democrático, entre os executivos, profissionais liberais e empreendedores e os de trabalho mais laboral, manual, braçal, sem quaisquer conflitos de classe (ou similares a isto).

Por mais que eu pudesse entender, em toda a minha vida acadêmica e a do movimento estudantil e partidário sobre as razões da desigualdade e a missão da classe trabalhadora (ou do povo, com a concepção nacional-trabalhista), ficava angustiado comigo mesmo. Não entendia a realidade nua e patente. Muito longe da torre de marfim da cátedra, com suas teorias e formulações.

Atentei-me, no segundo andar do KFC, ao solidarismo entre as pessoas, nas atitudes mais simples do cotidiano. Um informava ao outro as horas; outro o caminho para o logradouro "x" ou "y". Mais à frente, outro explicava o local do ponto de ônibus da linha "a" ou "b".

Por outro lado, senti, paradoxalmente, o grau de indiferença entre as diversas classes sociais. Como o que mais interessasse fosse o meu. "Dane-se o outro", naquela velha filosofia rota de boteco do "cada um por si e Deus por todos", num pensamento individualista pequeno-burguês de dar dó.

Só fui eu parar para observar, em 20 minutos, uma pequena reprodução do dia-a-dia do centro carioca para ver as contradições mais certas. Minha miopia social impedir de ver.

Ou se eu via, eu as ignorava e achava como coisas simples e banais, tais como dois mais dois são quatro.

Pudera... eu naquela vidinha de classe média, entre a internet banda larga e TV a Cabo, achava que era uma pessoa bem informada e antenada com o Rio, o Brasil e o mundo.

Bastava isso e pronto!

Nunca vi em mim pular tanto os meus sentimentos e valores cristãos-progressistas tão vivos e latentes!

Dois vendedores ambulantes foram agredidos pela Guarda Municipal. Inconformado, quis reagir ao tratamento truculento dos guardas. Todavia, não tive ao menos uma atitude, nem que fosse verbal.

Fiquei impotente.

Os dois eram trabalhadores informais. Talvez, fosse a infração promovida pela Guarda, por eles driblarem o desemprego. Não poderia ter a oportunidade de exercer o direito de... trabalhar!

Para variar, não vi UMA VIVA ALMA se solidarizar com os trabalhadores agredidos. Quem estava namorando naquele momento, passou a se beijar e se abraçar, como se nada tivesse acontecido. Os transeuntes, com suas ocupações e problemas particulares, nada estavam afeitos à situação presente em frente ao KFC e continuaram a prosseguir a sua caminhada.

Profissionais liberais, advogados, empresários, jornalistas, economistas, vendedores, "office-boys", assessores políticos, ascensoristas, empacotadores... todos passavam e nenhum prestara solidariedade aos dois homens agredidos covardemente pela Guarda Municipal. Nenhum!

Nada de solidarismo naquele momento. Cada um por si...

Após aquele emaranhado de pensamentos, acabou todo aquele vexame. Senti, após um auto-exame no KFC, toda a minha hipocrisia.

Condenara em minha mente, minutos atrás, todos aqueles transeuntes, até então solidários mesmo em meio à correria cotidiana. Eles não eram "obrigados" a ajudar os ambulantes. Todavia, no meu código de valores e pensamentos, eles deveriam agir contra os guardas municipais.

E eu? O que eu fiz, quando não estava fazendo absolutamente nada?

Divaguei entre meus pensamentos, sem que transformasse-os em prática. Sequer agi naquela oportunidade, na condição mínima de um "bom samaritano".

Fiquei indignado comigo mesmo.

Me maltratei psicologicamente. Chamei-me de hipócrita, de fariseu. Fui um mercenário vil das minhas idéias. Não apliquei em momento nenhum a Bíblia! Ou mesmo a idéia de fraternidade e solidarismo humano, presente na retórica progressista e de esquerda, mas tão ausente no dia-a-dia. Dizemos tudo, no entanto reproduzimos o individualismo e a disputa egóica e meritocrática que tanto condenamos pessoalmente.

Entre crianças abandonadas, ambulantes vendendo seus produtos, o andar apressado dos indivíduos, os discursos do PSOL na praça, o toque de blues do Sérgio Bop e a melodia dos bolivianos no Buraco do Lume, fiquei introspectivo.

A partir daí, comecei a pensar que o carioca poderia desenvolver de bom o solidarismo e a alegria em meio ao dia árduo; o espírito alegre e harmônico. Extirpar de ruim a indiferença e a frieza.

O povo carioca, alegre por natureza, sempre teve um perfil questionador e foi por estes traços que o Rio se fez Rio, com o seu Centro da cidade efervescente.

Hoje vemos um Centro transitório, onde as pessoas mal param para discutir sobre futebol, moda, fofocas e intriguinhas do trabalho em torno do chefe mal-humorado ou do colega de trabalho subserviente e adulador. Não se discute o presente, a vida, o futuro, a sociedade, o mundo - ainda que na perspectiva cotidiana do carioca.

Sai do KFC em vinte minutos, conhecendo mais a minha cidade, se comparado aos vinte e oito anos de vida que eu tinha naquele momento. O que acontece no Centro, reproduz-se inevitavelmente nos subúrbios e periferias do Grande Rio, em um raio de abrangência que só Deus sabe qual o alcance que irá tomar tais eventos.

Conheci parte da vida inteira em vinte minutos. Para a alegria, consternação e resignação que tive ao mesmo tempo.