O MERCEEIRO

Eventualmente, o poeta interrompe o seu fazer poético e se transforma num cronista, ocupando-se em observar a realidade existencial imediata, para após, contá-la de modo prosaico; sendo que, algumas vezes, sobretudo, se o cronista é também um poeta, o fato da crônica pode ser contado poeticamente, através da linguagem coloquial de fácil compreensão, para que o leitor possa lê o texto como se fosse uma prosa em verso.

Aliás, eu mesmo, como poeta/cronista ou cronista/poeta, embora escreva mais em verso do que em prosa, também posso, se quiser, reverter o texto poético em texto prosaico. Portanto, tenho o hábito salutar de escrever, tanto em prosa quanto em verso; ou como fazia o notável poeta Carlos Drummond de Andrade (que foi também um exímio cronista), o qual, muitas vezes, exercendo o ofício jornalístico, escreveu inspiradas crônicas, e algumas delas foram reunidas em livro, como o que ele atribuiu o sugestivo título – Versiprosa – para que o leitor o lesse como crônica e poesia ao mesmo tempo.

Com a consciência direcionada às atividades da mercearia que adquiri recentemente, que fica (para minha comodidade de deslocamento), defronte da minha casa, não percebi de imediato, as presenças agradáveis de dois lindos caqueiros, situados em lados opostos ao longo do passeio do estabelecimento comercial. Logo eu, que sou um amante inveterado dos elementos, das coisas naturais...

Porém, quando o dono anterior me pediu para que continuasse cuidando bem dos dois caqueiros, foi que reparei com olhar poético, no aspecto ajardinado ou campestre das duas plantas, ostentando o seu viço verdejante, contrastando com a falta de árvores na rua em que moro.

Eu sempre demonstrei uma atenção, um carinho especial pelas plantas, flores, bichos, mananciais... A natureza está todo tempo presente em meus poemas; assim como Deus, o amor, o bem e a espiritualidade. Além do mais, toda a minha literatura está íntima e profundamente vinculada à parte espiritual da vida.

Por não mais exercer a agrimensura, profissão que abracei durante três décadas, passei a acalentar um sonho antigo – o de ser um merceeiro! Se alguém me perguntasse por que sempre almejei ser um dono de mercearia, não saberia exatamente lhe responder por qual motivo... Na verdade, a força das coisas me conduziu para exercer uma profissão que desconhecia; entretanto, tanto aprendi a exercê-la quanto a desempenhei com aplicação e saber profissional.

Outro fato é que, a inclinação para a intelectualidade, o gosto pela leitura, aflorou-me muito cedo, pois aos sete anos de idade já lia correto; e aos doze, comecei a escrever os primeiros rabiscos poéticos, quando nem imaginava em ser, no porvir, um técnico agrimensor. Ademais, lembro-me que, à medida que trabalhava, também escrevia nas horas ou nos dias de descanso; e costumava dizer pra mim mesmo que, todo tempo que me aposentasse da profissão, iria me dedicar à escrita literária.

E foi o que ocorreu. Já aposentado, fiquei recluso no lar durante três anos, só lendo e escrevendo, além de me ocupar com os afazeres domésticos. Mais escrevi do que li. Nunca escrevi tanto em minha vida nos últimos três anos. E, para mim, até agora, foi a melhor fase de edificação do meu espírito. Se quisesse continuar em casa só fazendo as atividades ditas acima, não sentiria nenhum tédio, depressão ou mal humor; e essa sensação agradável de gostar de ficar em casa, de ser um homem caseiro é porque passei a minha vida profissional viajando, ficando assim, mais tempo fora, do que dentro de casa.

Acontecia que, mesmo satisfeito com o rumo cômodo de minha vida, casualmente, a vontade de ser um merceeiro crescia em minha consciência, tanto por certo pendor como por útil complemento de renda. E a realização do sonho ocorreu mediante um amigo comerciante, aliás, um verdadeiro amigo, que, com outros objetivos construtivos em sua vida, resolveu passar o ponto comercial pra mim, em condições adequadas para que a negociação fosse concretizada.

Como disse acima, não sei bem o motivo pelo qual era impelido a ser um merceeiro... Ocorre que, sendo espiritualista, que crê na reencarnação como uma das leis naturais de Deus, já devo, possivelmente, ter exercido essa atividade comercial em uma das minhas existências anteriores. Ou então, tive vontade de exercê-la mas não pude, por alguma causa que desconheço na presente encarnação.

Pelo fato de trazer da profissão a experiência adquirida em lidar com cálculos e pessoas, não tive dificuldade de me adaptar à nova atividade. E os dois caqueiros, como símbolos da natureza vegetal à frente da mercearia, além de cuidar deles diariamente com carinho, serão, certamente, motivo espontâneo de inspiração do cronista/poeta que ama a natureza, sempre vivenciando-a harmoniosamente, seja no ambiente rural ou urbano.

Enfim, agora sou um agrimensor aposentado; um eventual escritor; e um comerciante atuante.

Adilson Fontoura
Enviado por Adilson Fontoura em 21/04/2015
Reeditado em 17/05/2015
Código do texto: T5215546
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2015. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.