Sina da nota de um real

Sou uma nota popular.

Percorro os lugares mais simplórios e, por vezes, inacessíveis. Locais, por vezes, repugnantes e outros inesperados. Entre a mão de gente que, hora ou outra, é ávida em me possuir, sou mexido por pessoas e pessoas acostumadas a me usar o tempo inteiro - como valor agregado ou troco complementar, sem muita valia.

Fui rasgado, dobrado, guardado em peças íntimas e, inclusive, esquecido. Às vezes, me jogam e fico perdido nas ruas e praças, buscando por alguém, descompromissado, que queira me encontrar e usufruir, ainda que ligeiramente, dos serviços que possa eu prestá-lo.

Eu, com os milhões de amigos de um real, posso também criar um patrimônio gigantesco, na vida de pessoas que nunca tiveram ou sentiram de perto a sensação de, pelo menos, viver uma vez na riqueza e na opulência. Sou a esperança de sonhadores e apostadores inveterados, na busca pela sua ansiada Mega-Sena, em uma interminável utopia milionária.

Vivo no cotidiano de trabalhadores e desempregados e, paradoxalmente, sou o passaporte do sonho de mulheres e homens que anseiam galgar e ascender socialmente.

Não acredito no meu valor, em tese. Psicologicamente, me sinto maior às vezes que o valor conferido a mim. De um em um real ninguém percebe, mas mudo a vida e o horizonte de muita gente boa.

Por estar presente na economia popular, conheço a fundo os constrangimentos de quem, por vezes, precisa de mim para inteirar a passagem de ônibus ou comer aquele PF (prato feito). Conheço a necessidade dos mercadores informais, dos catadores de lixo e de tantos outros profissionais marginalizados que me buscam como fonte de renda semanal ou mensal.

Sempre tive sentimentos ambígüos. Já me senti, em certos momentos, valorizado em pé de igualdade ou superioridade ao meu desafeto dólar. Em outros momentos, desprestigiado e desvalorizado, cultivando sentimentos ambígüos de mágoa, tristeza, dissabor e auto-comiseração, dia-a-dia, hora-a-hora.

Hoje me sinto útil.

Muito mais que os fartos livros de auto-ajuda "caça-níqueis" (entre neurolingüístas, escritores amadores, picaretas e estelionatários da boa-fé e ingenuidade do povo brasileiro), eu sou indispensável e me sinto desejado, ainda que no inconsciente de multidões e multidões. Meu papel é facilitar a vida de muita gente, grata pela minha existência. Não fosse pelas notas miúdas, centenas e milhares de indivíduos se estressariam na hora de receber o troco ou não conseguirem pagar a alimentação em restaurantes finos, pizzarias e biroscas. Brigas e brigas se multiplicariam pelo fato de pessoas - anônimos ou cidadãos renomados - não honrarem os seus compromissos, por causa de um mísero... um real!

Sou a paixão do povo brasileiro, junto com o samba, o futebol e o carnaval. Vivo com orgulho a minha saga e a minha sina!

Sou, simplesmente, um real!