HIPOCRISIA ESCOLAR

Chegaram à sala da coordenação as duas alunas que brigaram. Uma delas espevitada e sem travas na língua, dizia o que a mente fervilhava. A outra decidiu chorar, jurando inocência, dizendo que não fizera por mal o que fizera. Por mal ou não, a verdade é que fizera. Jogara uma bola de papel na cabeça da espevitada e essa retribuíra com um pescoção, que também teve retorno, de sorte que ambas foram levadas ao tribunal da unidade escolar, onde foram cercadas por inquiridores que decidiriam qual delas estaria errada naquela celeuma sem testemunhas.

Depois de muitas indagações e um falatório pouco produtivo, a pessoa chefe do interrogatório resolveu fechar a questão de uma forma bem incisiva: A mais faladeira das brigonas estava errada, porque ela "conhecia a peça". Já tinha outras passagens na coordenação, era respondona e desaforada e não tinha como estar certa. De nada valeram as argumentações da ré, e não adiantaria ninguém se oferecer como defensor. Ao mesmo tempo, formou-se um cerco de condoídos em redor da que chorava, que por coincidência ou não, era mais bonitinha, de faces rosadas e roupa de bom gosto. Ela chorava. E não existe argumento melhor do que a lágrima, nesses tribunais improvisados nas dependências das escolas, por pessoas desqualificadas para tomar decisões dessa natureza.

Essa forma preconceituosa de resolver as arestas é tão comum nas escolas quanto nas empresas, greis, ordens, famílias, a sociedade num todo. Todos têm seus culpados prediletos, facilitando a resolução de questões que seriam muito mais intrincadas, quiçá insolúveis, se fôssem seguidos critérios de justiça e transparência. Já é consenso em qualquer meio a devassa da vida pregressa como forma de afirmação de culpa no presente. Todo o mundo quer agir como a polícia ou a justiça instituída, trabalhando em cima das aparências e dos currículos comportamentais não dispondo, entretanto, das técnicas investigativas, escavações criteriosas de pistas que possam levar aos vereditos com pouca margem de erro.

É assim que vivem na sociedade os ex-presidiários redimidos, as mulheres abandonadas porque uma vez traíram, as crianças e adolescentes filhos de pais separados, os meninos mais pobres e desfigurados de qualquer meio. Vivem assim os alunos que dão trabalho, aqueles que não aceitam tudo, os famosos por seus comportamentos arredios: Aprontam sempre, mas mesmo quando não o fazem são culpados, especialmente quando se tem que escolher, na falta de provas, entre eles e os mais comportados, às vezes mais sonsos, que dominam bem as artimanhas da expressão terna, carente ou chorosa nos momentos oportunos para isso.

Somos uma sociedade marcada pela hipocrisia, o preconceito, a arrogância, o complexo de superioridade e plena sapiência. Tudo isso fica muito evidente quando bancamos os juízes, baseados apenas no fato lamentável de conhecermos "as peças" ou os "nossos gados", como costumamos rotular seres humanos em posição de inferioridade, nos seus momentos mais finfelizes.

Demétrio Sena
Enviado por Demétrio Sena em 26/06/2007
Reeditado em 15/07/2007
Código do texto: T541312
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